Confúcio e Aristóteles

Por não prescindir, pois, de uma “sabedoria” (ou melhor, o ensejo latente de aplicar de forma prática e constante seus expedientes filosóficos), os chineses teriam conseguido atingir uma outra concepção de justa medida (zhong yong )[1] que não se estagnou no sufocante e insatisfatório “meio termo” em que teria se transformado o justo meio (mesotes) aristotélico. Jullien aponta corretamente que tal processo decorre de uma vulgarização do aristotelismo, onde “a noção perde seu rigor e se estiola, ela se rebaixa a conselho de prudência, coincidindo com o “nada de exageros” da opinião comum” (SBI, 31).
Decorre que o pensamento chinês, crendo conhecer o problema do ser humano em trabalhar com os extremos, não se deixou enganar pela falsa idéia de que podemos tão facilmente levar uma vida de privações e dela obter a felicidade. Na verdade, viver resignado sem experimentar de alguma forma o excesso (ou a falta) só leva a um crescimento da tensão entre ambos – ou ainda, a realização de uma vida que só se viveria pela metade (SBI, 32). Confúcio e Aristóteles defendiam a necessidade de empregar a “prudência” (a fronesis grega, ou a zhi chinesa) para inferir esta justa medida; mas á esta prudência, esta “sabedoria da ação prática”, Confúcio opõe (dentro da tradicional “oposição complementar” chinesa, claro) uma sabedoria mais profunda, um conhecer mais amplo (sheng ), que concilia a determinação dos procederes externos e das necessidades internas. Este recurso termina por salvaguardar a noção de justa medida confucionista, preservando sua proposta original; ela regula, na atuação do mutável, o que é imutável. Ela adeqüa à necessidade a noção de princípio. Não se atreve a normatizar universalmente aquilo que é particular, mas fez o inverso: propõe que o ser, individualmente, busque a sua atuação entre os extremos, experimentando–os, navegando por entre as circunstâncias, determinando para si o ponto certo entre estas tensões – e tudo isso sem ser, de alguma forma, prejudicial aos outros.
Esta centralidade adaptativa chinesa é, provavelmente, o principal ponto de diferenciação entre o pensar aristotélico e confucionista quanto a possível identidade conceitual da idéia de justa-medida. Como afirma Jullien:
“Não apenas este justo meio se opõe ao meio-termo de uma sabedoria timorata, mas vê-se também que se distingue da medianidade aristotélica (SBI, 36 - EN, II, 5); é mesmo todo o plano de fundo nocional que se acha implicado, por isso vale a pena remontar à diferença: 1. enquanto, do lado grego, o meio próprio à virtude é encarado na mesma perspectiva da ação (ergon), é concebido de maneira técnica e de acordo com um modelo posto como objetivo (de tipo matemático: por divisibilidade, igualdade, proporção – ele é “um”, o erro é “múltiplo”; no plano de fundo está o cosmos, como já no Górgias, 504a), a concepção chinesa se inscreve numa lógica do desenrolar, sendo o real concebido de acordo com a categoria do processo; este é meio porque, podendo variar de um extremo ao outro, a regulação é contínua; 2. Aristóteles tem a idéia de um meio variável, que não seja apenas aritmético (como 6 entre 2 e 10), mas relativo a cada um (determinada quantidade de comida é muito para um, pouca para outro), e procede por adaptação circunstancial (“no momento preciso”, “nos casos e ante o que é necessário”, etc.), mas não tem a idéia de um meio por variação de um extremo ao outro, igualmente possíveis, como na concepção chinesa de dois meios; 3. o justo meio aristotélico diz respeito apenas à virtude ética (e, ainda assim, não há justo meio da moderação), ao passo que o justo meio chinês corresponde à lógica de todo o processo (que, por ser contínuo, deve ser regulado). Não há, na China, de um lado, o real e, de outro, o bem; mas aquilo de que procede o real, e que é condição de seu advento, como no justo meio da regulação, é também a norma do bem. Ou, antes, não é uma norma, mas apenas o “caminho”, pelo qual o real é viável, o dao” (SBI, 36-7).
A idéia de aproximar as duas concepções de justo meio e de inferir nelas uma identidade maior do que sua divergência (ou seja, uma  identificação entre o princípio que as fundamenta) foi detectada também por outros autores. Pan (ZXYW, 2001) defende, por exemplo, que esta medida, tal como se encontra em Xunzi, se baseia numa prudência (Zhi 知) que evoluiu no confucionismo em um sentido próximo do aristotélico, ponto de vista também evidenciado por Hutton (JCP, 2002). Jiyuan defende, porém, que a visão original de Confúcio, identificada por Zisi e desenvolvida por Mêncio, prevaleceria sobre as demais (JCP, 2002). A idéia de que estes conceitos podem ser intercambiáveis é ainda aludida por Sypniewski (JCP, 2001), Ryan (JCP, 2001) e Chung (JCP, 2002).
Jiyuan propõe ainda que, além da prudência, a virtude é um dos compósitos fundamentais do conhecimento e da prática da justa medida (PHEW, 1998), e o fundamento interpessoal desta regra – ou seja, sua articulação entre uma busca pessoal e a vivência em sociedade – estrutura-se justamente em torno destes valores (Qinjie: PHEW, 1999).
Não se pode ignorar que há uma relação entre estas duas concepções de justa medida. A questão é como demonstrá-la, de maneira que ela atenda as especificações exigidas tanto pelo pensar ocidental quanto pelo chinês. Há diferenças no modo como esta regra foi aplicada em ambas as sociedades. De onde provém estas divergências? Derivam de um plano cultural ou histórico? Resultam da conjunção de outros conceitos cuja estruturação baseia-se em duas lógicas distintas? E, ainda assim, como tais conceitos convergem para um fundamento similar?
A partir daqui, portanto, buscaremos fazer uma exposição detalhada do problema, orientados pela análise feita por F. Jullien em Um Sábio não tem idéia. A questão da justa medida – ainda que trabalhada de forma rápida no livro – é a culminância, na verdade, de um laborioso processo no qual chineses e gregos investiram uma grande quantidade de energia para estudar, definir, construir e criar uma forma viável de aplicar esta concepção em cada uma dessas sociedades. Sua investigação traz à luz a possibilidade de uma “imanência do saber”, tal como veremos a seguir, que propicia a diversidade interpretativa sobre um saber possivelmente deontológico (e ao mesmo tempo, teleológico - mas será que até mesmo essas noções serão apropriadas?).
Primeiramente, faremos uma apresentação das estruturas básicas do pensamento chinês, que nos possibilitarão compreender como ele funciona, suas possíveis aberturas interculturais e o ponto de partida onde a idéia da justa medida surge, seu entendimento e aplicabilidade.
Nossa orientação seguirá, basicamente, a linha proposta pela Escola de Confúcio (Rujia), que manifesta no Tratado intitulado Zhong Yong as suas concepções de justa medida. Analisaremos a crítica dos principais pensadores chineses antigos acerca da questão, e apresentaremos uma tradução própria do texto para efetivar sua interpretação.
A seguir, procederemos à análise interconectiva das concepções grega e chinesa, buscando explicar o espectro de sua identidade e a origem de suas possíveis divergências. Ao privilegiar o pensamento chinês, queremos estabelecer uma ponte necessária ao seu entendimento; ou, como afirma o próprio Zhong Yong, “nada mais visível do que o que não se busca ver: nada mais palpável do que o não-tocado” (ZY, 1), pois “o caminho do ser moral está em toda parte, e não é encontrado” (ZY, 12).
Na dissecação de um problema complexo como a noção da justa medida, queremos acreditar que há uma possibilidade do ser humano fazer valer a idéia de que ele é universal e equânime. Pois, não teria dito o mestre, “o caminho não está longe do ser humano; se dele pudesse se separar o ser humano, então não seria o caminho verdadeiro”? (ZY, 13). Para responder a isso, então, a China será o nosso espelho. E no espaço vazio da interculturalidade, o justo meio será o tema principal do diálogo entre o Zhong Yong  e a Ética a Nicômaco.


[1] Sobre as questões que envolvem a tradução deste termo Zhong Yong, consultar o anexo.