O Zhong Yong e a Justa Medida

Até que o Zhong Yong se tornasse o texto da justa medida confucionista por excelência, as orientações do Mestre estiveram sujeitas, porém, a uma série de discussões empreendidas posteriormente por discípulos de sua escola.
Mengzi (Mêncio, IV-III a.C.), um dos principais defensores da via proposta por Confúcio, abordou criticamente a questão da propensão do ser (shi) perante o li e o dao. Para Mêncio, os seres tinham uma tendência natural para o bem, pois sua natureza era, em essência, benévola:
“todas as pessoas tem um coração sensível aos sofrimentos de outros. Os grandes reis do passado tiveram, por sorte, este coração sensível; e políticas cheias de compaixão foram adotadas. Trazer a ordem ao reino é tão fácil quanto mover um objeto em sua palma quando você tem um coração sensível e põe, em prática, políticas de compaixão. Me deixe dar um exemplo do que eu digo, ou seja, que todos tem um coração sensível aos sofrimentos de outros: qualquer um que viu, de repente, um bebê próximo de cair em um poço se sentiria alarmado e iria salvá-lo.  Não seria porque quis melhorar suas relações com os pais da criança, nem porque quis uma reputação boa entre seus amigos e vizinhos, nem porque não gostou de ouvir a criança gritar. Disto segue que qualquer um à quem falta sentimentos de comiseração, de carinho, de cortesia ou um sentido de certo e de errado não pode ser entendido como humano”(MZ, 2:6);
“Gaozi disse: “a natureza humana é como a água correndo: quando um curso é aberto ao leste, ela flui para o leste; quando uma corrente é aberta ao oeste, flui para o oeste. A natureza humana é mais inclinada ao bom tanto para o leste quanto para o oeste. Mêncio respondeu: a água não tem preferência pelo leste ou pelo oeste, mas não tem uma preferência pelo cimo ou para baixo?” A bondade é na natureza humana como fluir da água para baixo. Não há nenhuma pessoa que não seja boa e nenhuma água que não flua para baixo. Espirrada, ela pode molhar sua cabeça;  se forçada, pode ser trazida acima de um monte. Mas esta não é a natureza da água.; são circunstâncias específicas. Embora os povos possam ser feitos para serem maus, suas naturezas não são mudadas” (MZ, 6:2).
As afirmações de Mêncio são importantes neste contexto, posto que elas põem em questão o que é o bem, e se a justa medida deve ser buscada ou se ela pode ser estipulada. Como sabemos, o problema de se tentar determinar o caminho do meio consiste, justamente, em criar um meio-termo que em quase nada atenda as necessidades do ser em descobrir-se, mas antes, induzem-no a se conformar a uma regra pré-determinada, como se esta fosse a via. Mêncio tentou escapar, tal como Confúcio, a especificar tais definições, afirmando que buscar o caminho significa, simplesmente, voltar a ele;
"todas as coisas já estão completas no eu. Não há maior delícia do que voltar ao eu com sinceridade" (MZ, 4:1); “sinceridade é o caminho do Céu, ao passo que pensar em como ser sincero é o caminho do Homem" (MZ, 7:1); “Exercitar plenamente nossas mentes é conhecer nossa natureza, e conhecer nossa natureza é conhecer o Céu. Preservar nosso espírito e nutrir nossa natureza é o meio de servir ao Céu. Manter a singeleza de espírito, quer soframos morte prematura, quer tenhamos vida longa, e cultivar nosso caráter pessoal e deixar que as coisas sigam seu curso, são os meios de talhar nosso destino" (MZ, 6:1).
Posto nestes termos, a natural propensão benévola dos seres humanos parece tornar a prática do caminho uma busca incessante, antes de tudo, pelo não cometimento de erros e pela cessação da ignorância através do estudo letrado. Mas esta abordagem aparentemente escondia, na verdade, uma importante crítica política e cosmológica feita à elite social da época; se fora esta a mais educada entre as classes, porque ela, também, era a maior praticante da corrupção moral e social? Mêncio pareceu querer retomar aí a visão de Confúcio de que todos os seres humanos podem aprender o caminho, porque o caminho está dentro de cada um; é isso que fazia com que as classes populares, mesmo sendo mais “ignorantes”, muitas vezes não se lançassem a cupidez ou a maldade, pois elas estariam mais próximas de sua natureza benévola (que não foi deformada por anseios materiais e intelectuais). Estudar seria, antes de tudo, fixar e manter o bem dentro de si, em quaisquer circunstâncias. Como afirma Chan (1978);
 “Essa tentativa de proporcionar um fundamento psicológico ao humanismo é um desenvolvimento significativo na escola confuciana, não apenas porque representa um grande avanço, mas também porque exerceu influência em toda a escola do Neoconfucionismo, principalmente do século IV até os dias atuais”.
Este otimismo proposto por Mêncio não se trata, assim, da estipulação de uma justa medida, mas uma justificativa pelo qual se deve buscar a justa medida, posto que ela naturalmente pertenceria ao ser humano (MZ, 6:3). A justa medida seria, em essência, a manifestação da própria busca por este bem maior, que é a harmonia, a centralidade do ser moral;
“Ren é o que faz de uma pessoa uma pessoa. É, portanto, o princípio moral” (MZ, 7:2) pois o ser moral “nada faz que não esteja de acordo com a natureza humana” (MZ, 4:2); "Gaozi afirmou; a natureza do homem não é boa nem má. Uns dizem: "A natureza do homem pode ser educada para o bem, como para o mal; conseqüentemente, sob o reinado de Wen e Wu[1], o povo prezava o que fosse bom; sob Yu e Li[2], preferia-se a crueldade [...] E agora dizeis: "A natureza é boa". Então, os demais estavam enganados? Replicou Mêncio: "Há sentimentos que nos levam à conclusão de que a natureza humana está constituída para praticar o bem. Eis o que pretendo dizer, quando afirmo que a natureza humana é boa; se o ser se desviar do bem, não se atribua a culpa às suas faculdades naturais. O senso de angústia compassiva pertence a todos os homens, assim como o da vergonha e do desprezo, o da modéstia e do respeito, o da aprovação e da reprovação. O senso da compaixão é o princípio de bondade; o senso da vergonha e desprezo é o princípio da justiça: o sentimento de modéstia e respeito é o princípio de correção; e o sentimento de aprovação e reprovação é o princípio de discernimento. Bondade, justiça, correção e discernimento não se insinuam em nós de fora; fazem parte de nós naturalmente; considerá-los sob outro aspecto, é simples irreflexão. Por isto, foi dito: "Procure-os e os achará; descuide-os e os perderá". Por eles, os seres diferem uns dos outros; mesmo os tendo em medidas iguais, alguns os desenvolvem, outros não" (MZ, 4:6). Em síntese; “grande é o ser que não perde o seu coração de criança” (MZ, 4:12); “retende-o firmemente [o coração, a sede da índole moral] e ele ficará convosco; se o soltar, ele se perderá” (MZ, 6:9); já que “a bondade é a qualidade própria do coração humano, e a justa medida é a sua senda” (MZ, 6:11).
Pouco depois, no entanto, outro pensador confucionista, Xunzi , construiu uma análise totalmente oposta à de Mêncio. Retomando a questão da propensão, Xunzi afirmava que a natureza humana era má em essência, e que para evitar sua própria destruição é que os seres haviam criado a cultura e as leis, impondo-se limites mútuos:
“A natureza do homem é má, bom é o produto humano. A natureza humana é tal que os povos nascem com amor ao lucro, e se seguirem essa inclinações, eles lutarão e arrebatar-se-ão uns aos outros, e as inclinações ao dever e a produção morrerão. Eles nascem com medos e ódios. Se os seguirem, transformar-se-ão em violentos e tendenciosos indo de contra a boa fé, que morrerá. Se forem indulgentes, e desordem da licenciosidade sexual resultará na perda dos princípios rituais e da moral. Em outras palavras, se o povo agir de acordo com a natureza humana e seus desejos, eles inevitavelmente lutarão, arrebatar-se-ão, violarão as normas e agirão de forma agressivamente violenta. Conseqüentemente, somente depois de transformados por professores e por princípios rituais e morais, de acordo com suas culturas, poderão permanecer em boa ordem. Visto por este lado, é óbvio que a natureza humana é má, e bom é o produto humano (XZ, 23)”.
Esta visão radical condicionava, de fato, a busca da justa medida a uma regulação precisa, que consistia em acumular virtude, desviar-se do erro e praticar a austeridade. Para Xunzi, o dao não era nada mais do que a própria lei moral, criada pelos seres humanos para submeter a natureza: “[o dao] não é o caminho do Céu, nem o caminho da Terra, mas o caminho seguido pelo ser humano, e caminho seguido pelo ser superior”(XZ, 8). Para inculcar nos seres humanos a lei moral, Xunzi acreditava igualmente na prática da educação, enfatizando, porém, seu caráter moldador, e não lapidar:
“deixar de estudar é voltar ao estado selvagem. Uma instrução de alguns minutos por dia é muito mais proveitosa do que pensar por si só um dia todo [...] assim é a educação dada por um bom mestre. No sábio, a doutrina entra pelos ouvidos e faz morada no coração, do coração percorre seus membros e se manifesta em todos os seus movimentos. Já o ignorante, neste a doutrina entra pelos ouvidos e sai pela boca sem que haja tocado seu íntimo” (XZ, 22).
Vemos pelas concepções totalmente opostas de Mêncio e Xunzi que os confucionistas possuíam boas razões para oscilar entre as duas correntes no período do IV – III a. C. O envolvimento de Xunzi com a formação da Fajia (Escola das Leis) - doutrina famosa pela sua preocupação com regulações sociais e tradicional adversária do confucionismo (ver Vandermeersch, 1961) - parece ter determinado o afastamento deste autor da genealogia confucionista, embora seu valor teórico nunca tenha sida negado (Jullien, 2001: 51-75). Mêncio, no entanto, terminou por ter seus escritos associados à obra do mestre Confúcio, sendo incorporado aos chamados quatro clássicos (sishu) do cânone tradicional.[3] Mas a grande resposta teórica dos seguidores de Mêncio ao problema do mal já se encontrava, a propósito, no próprio livro do Mestre: ”somente um ser benévolo pode criar leis boas, mas as leis não podem se criar por si próprias” (MZ, 4:1). Este simples – porém eficaz - comentário parece ter sido determinante para o seu triunfo.
A questão shi (propensão ) – dao (caminho ) – zhong yong (justa medida ) ainda não estava fechada, contudo. Neste mesmo período, as discussões suscitadas sobre a natureza humana levaram a escola dos letrados a escrutinar os livros confucionistas em busca de textos que dessem base e respondessem a questão do proceder em relação à justa medida. A opção recaiu por um capítulo do Manual dos Rituais, Liji, que parecia adequar-se perfeitamente a este problema; o capítulo 31, o famoso texto do Zhong Yong.
A tradição confucionista afirmava que este texto havia sido coligido e revisto pelo neto de Confúcio , Zisi . Zisi teria sido, igualmente, o mestre de Mêncio, e algumas partes do Zhong Yong parecem identificar-se, de fato, com o Mengzi shu.[4] Disse, aliás, o próprio Mêncio: “Não pude eu ser discípulo de Confúcio, mas aprendi diretamente com seus familiares” (MZ, 4:22). O Zhong Yong, como o próprio título indicava, tratava justamente da articulação entre o caminho e o justo meio, estruturando o modo de abordá-los sem, no entanto, estipulá-los. Num parágrafo bastante específico, que estabelece a ligação entre o tradicional método confucionista de investigação com a já discutida questão da propensão, diz o texto: “Chegar à compreensão do próprio eu é chamado natureza, e chegar ao próprio eu pela compreensão, isto é chamado instrução. Aquele que é seu verdadeiro eu, tem por esse meio a compreensão e aquele que tem compreensão encontra, por esse meio, seu verdadeiro eu” (ZY, 21). Portanto, seria da natureza humana buscar o que é verdadeiramente bom; a isto se chama zhong yong (justa medida), que se obtém pela jiao (instrução), e que atinge o dao (caminho). Os três se interpenetram, se completam, gerando-se mutuamente – são três, tal como o três gera as dez mil coisas (DDJ, 42). Eis a fórmula ao qual nos remetemos novamente; “O que o céu concedeu ao ser é chamado natureza humana; seguir esta natureza é chamado caminho; seguir o caminho é chamado instrução”. (ZY, 1). O Zhong Yong encerra, pois, a questão de como relacionar a justa medida e a regulação. Não há nenhuma regra que o ser não determine por si próprio pela experimentação e pela sua relação com os outros seres. Ele une o interno e o externo, o mutável e o imutável, descobre entre as regras do cosmo aquelas que se aplicam a sua pessoa, toca os extremos, infere o meio e busca a harmonia com a coisas. É por isso que Dong Zhongshu, no século II a. C. afirmará que a natureza humana é regida por propensões advindas da conformação íntima de cada ser, derivada da forma pelo qual o qi nela se concretiza através do wuxing (cinco fases, ou agentes). (CQFL, 56, 57) Vários outros autores posteriores ainda opinariam sobre a natureza do ser humano, mas nenhum discordaria da preeminência do Zhong Yong sobre o tópico da justa medida. Ele é o texto básico para atingi-la.
E esta instrução é o estudo. Deve-se estudar para se saber quem é. Estudar é instruir-se sobre si próprio, portanto. Este é o atributo do ser moral (junzi). Esta é a via proposta pelo Zhong Yong, cujo texto veremos a seguir.


[1] Reis Fundadores da Dinastia Zhou (sécs. XII a.C – aproximadamente III a.C.)
[2] Tiranos famosos da China Antiga.
[3] Os quatro livros são o Lunyu (Diálogos), Zhong Yong  (O Justo Meio), Daxue (Grande Estudo) e o Mengzi shu (Livro de Mengzi), obras cujo estudo era priorizado desde a antiguidade, até que no período Song o filósofo Zhuxi (1130-1200) as tornaria o “corpo oficial” da escola dos Letrados.
[4] Yutang, 1958: 96; Guerra, 1984: 35-36.