As Virtudes Confucionistas e Aristotélicas - Do que se compõe a Justa Medida

Sendo o conjunto das virtudes aquilo que constitui a excelência, e sendo elas mútuas, reconhecidas e morais por serem justas, devem ser elas então necessariamente eficientes - e se estabelecerem sobre uma base comum - posto que são parte de uma disposição adquirida que fundamenta a ação (Dherbey, 2002: 6); e, se elas se propõem a serem realizáveis, devem, por conseguinte, ser igualmente eficazes, efetivas e acessíveis (ibidem, 6-9).
Confúcio definiu claramente que a virtude se estabelecia nesta moderação entre a deficiência e a desmedida (Jiyuan, 2002: 342), e nesta justa medida (zhong yong) é que se constrói o que é dignamente moral (yi); do mesmo modo, Aristóteles afirmava que existiam três tipos de disposição moral: o excesso, a falta e a justa medida – esta última, como vimos, que se adquire pela experimentação e que constitui a base de sua excelência; “toda virtude é produzida e destruída pelas mesmas causas e pelos mesmos meios” (EN, II, 1, 1103b 5), “ela é o produto do hábito” (EN, II, 1, 1103a 15).
Partindo da concepção de que a justa medida é um ajuste de propensão (que se formula e adeqüa continuamente) ao que é justo, tanto gregos quanto chineses definiram, conseqüentemente, uma série de modelos de virtude que serviriam de fundamento para excelência moral. Estas mesmas virtudes são o ponto de referência sobre o que é moderado, em relação aquilo que é ausente ou exacerbado; tem por base (e objetivam) a ação prática, e estruturam o arcabouço de experiências necessárias à aquisição da sabedoria. Referem-se diretamente à busca do prazer e da dor que permeia a empatia para com a medida, e seu entendimento (EN, II, 3, 1104b 15/35 – ver também a idéia de oposição como medida da virtude em Silva, 1998:129-134).
Confúcio aufere uma longa lista destas virtudes[1] que caracterizam aquilo que pode ser dito como sinceridade moral[2], ou seja, o ensejo em praticar aquilo que é justo. Os três meios básicos de sua aquisição são “Sabedoria, humanismo e coragem - são esses os três meios do homem, conhecidos por todo o mundo; e o são porque todos os põem em prática” [grifo meu] (ZY, 20). Neste momento, o mestre deixa claro que tais meios são justos porque todos o reconhecem como tal; ou seja, vem do ser, se aplicam ao mesmo e por eles se renovam. Isso fica ainda mais patente quando, na seqüência, apresentam-se as condições de aquisição das virtudes;

“Seja conhecendo isso por si próprio
Seja conhecendo isso pelo aprendizado
Seja conhecendo isso por duras penas
Quando o conhecimento é atento, ele é Um
Seja pela serenidade advinda da prática
Seja pelo interesse advindo do estudo
Seja pelo efeito de um grande esforço
Quando o resultado é obtido, ele é Um!” (ibidem)

Por este viés uno (e porém, multifacetado), os seres podem atingir a excelência (SBI, 129-30). E Zisi termina a seção;
“O Mestre disse: o amor ao saber está próximo da sabedoria (Zhi). O devotamento está próximo do humanismo (Ren); a sensibilidade à vergonha está próxima da coragem (Yong). Quem conhece estas três coisas sabe como cultivar sua personalidade moral” (ibidem).
Este esquema trinitário resume os quesitos fundamentais pelos quais se estrutura a busca pela justa medida; sabedoria prática (zhi), que consiste em estudar e conhecer as coisas; humanismo (ren), pelo qual se estabelecem as relações entre o indivíduo e os outros seres; por fim, a coragem (yong), pelo qual se assume o caráter dos atos praticados (ações estas que, no caso grego, são ditas dianoéticas, pois são feitas de acordo com o logos). Por isso mesmo é que (dando seguimento a Confúcio e Zisi), se afirmará:
“A sinceridade com sigo próprio é o Caminho do Céu; a sinceridade com os outros é o Caminho dos Seres Humanos. Aquele que é sincero consigo mesmo chega ao justo (Centralidade) sem esforço, compreende sem pensar, e segue facilmente pela medida (Caminho); este é o sábio. Buscar esta sinceridade consigo mesmo é acolher o bem dentro de si e o manter de forma firme; estudar para ampliá-lo, buscá-lo com precisão e raciocinar com atenção, discernindo-o com clareza, e o pondo em prática por completo em tudo que faz” (ibidem).
Esta é a sinceridade moral, pela qual se alcança a virtude.
O caráter prático desta busca situa-se no final do mesmo capítulo;
“Há pessoas que não estudam, ou estudando, não buscam ampliá-lo, mas não o abandonam [o caminho]. Há pessoas que não o buscam, ou buscando-o, não fazem com precisão, mas não o abandonam. Há pessoas que não raciocinam, ou raciocinando, não o fazem com atenção, mas não o abandonam. Há pessoas que não o discernem, ou discernindo-o, não fazem com clareza, mas não o abandonam. Há pessoas, por fim, que não o põem em prática; ou pondo-o, não o fazem por completo, mas não o abandonam. O que os outros fazem uma vez, elas fazem cem vezes; O que os outros fazem duas vezes, elas fazem mil vezes; Se alguém for capaz de realmente seguir este caminho, seja um tolo, ele se esclarecerá; seja um fraco, ele se fortalecerá” (ibidem). Por isso, “o ser moral respeita a natureza de sua capacidade, ao mesmo tempo em que ele não cessa de estudar e de se aperfeiçoar. Expande seus conhecimentos a amplidão, e busca o sutil e o fim [das coisas]. Procura atingir o mais alto e o mais claro, ao mesmo tempo em que conduz sua vida pela justa-medida. Revelando o antigo, descobre o novo. Sincero e profundo, respeita as exigências rituais” (ZY, 27).
Aristóteles concilia igualmente o problema do saber prático com a aquisição da virtude, pois nisso consiste a estrutura da ação dianoética;
“Por outro lado, nossas funções só atingem a plenitude se tivermos a prudência (frônesis) e a virtude (ethike arete)[3]; a virtude faz com que busquemos o que é correto; a prudência, com que escolhamos os meios corretos" (EN, VI, 12, 1144a 10).
Com base nisto, o filósofo elabora uma extensa relação daquelas que podem ditas as virtudes características de uma justa medida. No livro II, 7 as principais virtudes são apresentadas de forma ligeira; o altruísmo/empatia[4] (EN II, 7;  1108a/35 e 1108b/5), o humor (EN II, 7;  1108a/25), a modéstia (EN II, 7;  1108a /35) e a amizade (EN II, 7;  1108a/30). A lista completa-se (em descrição) com os outros livros: coragem (EN II, 7 e III 6-9; 1115a/5 - 1117b/20), temperança (EN, III, 10-12; 1117b/25 - 1119b/20), magnificência (EN, II, 7 e IV, 2; 1122a/20 - 1123a/30), liberalidade (EN, II, 7 e IV, 1; 1119b/15 - 1122a/15), sinceridade (EN, IV, 7-8; 1127a/15 - 1128b/5) e paciência (EN, IV, 5; 1125b/30 - 1126b/10).
Todas estas virtudes são determinadas entre o excesso e a ausência de qualidades que podem ser tidas como não virtuosas; para a coragem, a covardia ou a temeridade; para a modéstia, o acanhamento ou a pretensão; para o humor, o sorumbático ou o desregramento, etc...tais modelos são da mesma maneira propostos por Confúcio, como podemos identificar;
“Somente, no mundo, o sábio absoluto está na medida de possuir o entendimento, a vidência, a penetração e o conhecimento, de modo a poder exercer o domínio; Ânimo, generosidade, doçura e paciência, de modo a poder fazer valer a compreensão; Energia, força, durabilidade e resistência de modo a ser capaz de firmar-se; Comedimento, gravidade, centralidade e retidão, de modo a se fazer responsável; Ordenação, coerência, fineza e atenção, de modo a ser capaz de discernir. [só o sábio é] Vasto, amplo, profundo, inesgotável como uma fonte sempre brotando, vasto e amplo como o Céu, e como as mais profundas águas” (ZY, 31).
A estas virtudes, soma-se o princípio da piedade filial (Xiao), que ordena de maneira virtuosa as relações de amizade (a filia grega) e de família (ZY, 19 e 20).
As virtudes não são apenas similares, mas são (também) basicamente as mesmas, pois são homeomórficas em conteúdo, intenção e proveniência. Um quadro correlativo pode ser estabelecido entre as mesmas:
Gregas (GR)-- Chinesas (CH)
GR Paciência, Altruísmo/Empatia
CH Ânimo, generosidade, doçura e paciência, de modo a poder fazer valer a compreensão
 
GR Sinceridade, Coragem
CH Energia, força, durabilidade e resistência de modo a ser capaz de firmar-se;
 
GR Modéstia, Temperança
CH Comedimento, gravidade, centralidade e retidão, de modo a se fazer responsável;
 
GR Liberalidade, Magnificência
CH Ordenação, coerência, fineza e atenção, de modo a ser capaz de discernir.
 
GR Amizade, Humor
CH Piedade Filial – Regulação dos deveres para com os familiares, amigos e governantes

Este esquema simples possibilita ainda algumas variações, se relacionarmos individualmente cada uma das virtudes apresentadas, e se tomarmos os meios de sua aquisição - antes citados - como base de sua estruturação. O que nos interessa aqui, neste caso, é demonstrar que a escolha destas virtudes modelares não é apenas arbitrária, mas determinada por aquilo que representa, justamente, a moderação em relação aquilo que provém da natureza humana.
Podemos então inferir que o sábio é este homem realizado que atingiu a realização, a felicidade pelo conhecimento (Chang, 2001); “Senso moral insondável, Profundeza ilimitada, natureza celeste infinita; se não possuirmos em si o entendimento – vidência que constitui a sabedoria do sábio para chegar ao poder do Céu – como podemos ter este conhecimento?” (ZY, 32). Ele realiza a ação segundo o conhecimento das coisas, e determina a centralidade (na virtude) inferindo o meio justo e correto (ZY, 6 e 8).
            É assim, pois, que as virtudes se estabelecem como a exemplificação do que é justo; ao mesmo tempo, elas re-elaboram a medida, e ambas se engendram mutuamente de modo contínuo. A busca desta centralidade reside na experiência prática, impulsionada e regida pela frônesis (zhi). Tais são então as virtudes que são justas porque todos podem compreendê-las como tal; ainda que não sejam praticadas, são reconhecidas comumente;
“As ações, portanto, são chamadas justas e moderadas quando são como as que o homem justo e moderado praticaria, mas o agente não é justo e moderado apenas por praticá-las, e sim porque, também as pratica como as praticariam homens justos e moderados. É correto, então, dizer que e mediante a prática de atos justos que o homem se torna justo, e é mediante a pratica de atos moderados que o homem se torna moderado; sem os praticar ninguém teria sequer remotamente a possibilidade de tornar-se bom. Muitos homens não os praticam, mas se refugiam em teorias e pensam que estão sendo filósofos e assim se tomarão bons” (II, 4, 1105b 5/15).
Mas aquele que busca a excelência tem as mesmas como a sua meta, pois a sua aquisição corresponde à justa medida; são, pois, o modelo daquilo que é virtuoso (Jiyuan, 1998 e Hwang, 2001).
 
O modelo da Arqueria
Jiyuan (2002: 344-45) demonstra ainda a convergência de ambos os autores para uma interpretação conceitual análoga dos processos de originação e composição da justa medida, estruturados numa interpretação e leitura igualmente semelhante. Tal consideração se consigna no modelo da Arqueria, identicamente presente em Confúcio e Aristóteles, como exemplificação do modo de aquisição da virtude;
“Mestre Confúcio disse: A Arqueria é como o sábio; quando se erra o alvo, busca-se a razão em si mesmo” (ZY, 14);
“[em relação ao Bem] devemos, como arqueiros que visam a um alvo, buscar atingir assim o que nos é mais correto (conveniente)” (EN, I, 2, 1094a/18-4) pois “é possível errar de varias maneiras,[...] ao passo que só é possível acertar de uma maneira - por esta razão é fácil errar e difícil acertar - fácil errar o alvo, e difícil acertar nele” (ibidem, II, 6, 1106b).
O modelo da Arqueira parece representar, de forma adequada, a concepção de que a busca da justa medida responde, antes de tudo, ao desejo de alcançar aquilo que é correto; só há um meio de atingi-lo, que é a prática da virtude (o hábito, a práxis) advinda do aprendizado (apreensão da técnica) e seu exercício constante. Tais condições, no entanto, são individuais; embora estes meios sejam acessíveis a todos (e por isso a justa medida é humana), depende de cada um buscar atingir a excelência, a perfeição.
Do mesmo modo, o treino com arco exige força, determinação e concentração; é uma arma que todos os segmentos da sociedade (tanto na China quanto na Grécia) conheciam e praticavam, e por isto exemplifica a capacidade que pode ser desenvolvida por qualquer um, sem exceção. Deve-se tentar inúmeras vezes para finalmente acertar o alvo; deve-se buscar as tensões do arco, conhecer as circunstâncias do tiro (o vento, a visão, o alvo); e, por fim, reconhecer que inúmeras vezes a razão do erro está numa consciência incorreta sobre o ato (pode-se acertar um alvo quando se está parado - mas em movimento, ou no meio de um combate, é necessário manter a firmeza íntima para se acertar o alvo – eis a grande dificuldade!). Por isso aquele que busca ser sábio deve palmilhar o terreno de sua consciência para atingir a excelência da justa medida. Apenas ele poderá saber a razão de seu erro, e seus limites próprios. Ou, como afirmou o Mestre:
“Na prática das virtudes mais ordinárias e dos cuidados mais ordinários, esforce-se sempre para corrigir seus defeitos e economizar palavras. Adequar as ações às palavras, não é esse o comportamento do ser moral?” (ZY, 13).
A exemplificação da Arqueria demonstra, assim, a importância da aquisição da virtude, que consiste numa disposição prática que se realiza pela busca individual, pelo exercício contínuo, por uma ação segundo o conhecimento. A demanda pela excelência moral - tal como o tiro com arco - parte do ser humano e nele reside, em seu desejo de aprimorar-se constantemente tendo como fim último a perfeição íntima. 


[1] Todas as Virtudes são De, em chinês; do mesmo modo, o que é virtuoso (ou seja, o conjunto de todas as virtudes juntas) também é De (tal como se a virtude fosse, de fato, apenas uma só). A ambigüidade deste jogo de palavras parece demonstrar a idéia confucionista de que o bem é um só, tal como Aristóteles propõe em EN, II, 6, 1106b-35.
[2] F. Jullien (1998) preferiu traduzir o termo como “Autenticidade Realizante”, buscando preservar a idéia do desejo de realizar aquilo que é moralmente correto por uma disposição íntima. Por conta disto, acredito que a tradução sinceridade moral cumpre de forma adequada o problema de transmitir o conceito, estando igualmente de acordo com o idioma chinês.
[3] Urmson (1980:160) afirma que se deve ter cuidado em traduzir Ethiken Areten como “virtude moral”; creio, porém, que a tradução de Irwin resolve o problema de forma adequada, indicando simplesmente a palavra como virtude, pois é a isso que ela se remete no contexto.
[4] Ou Justa Indignação.