O Texto de Zhong Yong

Para apresentar a seguinte tradução do Zhong Yong, decidi-me por utilizar o sistema clássico de comentários chinês, que consiste numa glosa simples e direta a cada um dos parágrafos analisados. Este método parece ter surgido do hábito – por nós muito conhecido – de anotar passagens importantes no texto fazendo observações sucintas e/ou relacionando-as com outros fragmentos de igual importância, tornando a leitura menos pesada, mais fluida e ainda, concordando com um modo de leitura e discussão do texto que têm mais de dois milênios de existência na China.
Isso não significa, porém, um “apego à tradição comentadora”, no sentido pejorativo da frase; tento aproximar-me do texto de forma interpretativa, inserindo minhas idéias e relacionando-o com outros escritos (como será com a Ética Nicomaquea de Aristóteles); mas preciso dialogar com ele, não posso apenas desconstruí-lo e lançar sobre ele meu “veredicto”. Não posso impor uma relação que pareça lógica se não o fizer abrindo um caminho dentro do texto para tal mister. O sistema de comentários chinês procura justamente isso: relacionar o saber de quem lê com o que está escrito, deixando o texto aberto à interpretação do leitor. Busca-se a referência precisa, que naturalmente manifesta a inter-relação entre a idéia de quem comenta e o texto. Notas copiosas, referências extensas e comparações parecem aos chineses um trabalho analógico que, neste caso, não se aplica; “um belo discurso pode levar a tomar-se o vício por virtude” (LY, 15).
Aparentemente este sistema amarra a leitura e digressão do Zhong Yong ao pensar chinês, mas isso é verdadeiro apenas em parte. Um comentador pode ir além, de acordo com o seu interesse, mas ele precisa provar a validade do que afirma despertando no leitor a empatia entre sua afirmação e o que está contido no texto. Como propôs um mestre da escola legista, Hanfeizi:
“A dificuldade em falar a uma pessoa não está em saber o que dizer, nem no método de argumentação que torne claro o que se pretende. Também não está na dificuldade de ter coragem para expor total e francamente o que se tem no espírito. A dificuldade está em conhecer a mentalidade da pessoa a quem se fala e em adotar o meio mais adequado para atingí-la” (HFZ, 12).
Isso nos remete, porém, a outras questões: porque me preocupo em agir como um “comentador chinês”, se sou ocidental? Porque analisar um texto segundo uma tradição que não me diz respeito? Não parece mais óbvio lê-lo segundo alguma técnica própria de nossa cultura, o que o tornaria mais compreensível? Como venho propondo desde o início deste trabalho, esta não é uma digressão simplificadamente analógica e nem pautada em algum tipo de hierarquia cultural. Não quero apresentar um Confúcio que teria simplesmente pensado a mesma coisa que Aristóteles e vice-versa, se para isso a existência de um devesse condicionar o saber do outro, ou se entre eles houvesse algum tipo de preeminência: objetivo sim, entender como ambos puderam inferir, de maneira semelhante, determinados conceitos éticos que embasam a formulação da idéia da justa medida, e de como esta os aproximam em vários pontos. Mas como meu texto básico é o Zhong Yong, não pretendo com ele dialogar impondo, desde o início, um filtro que não lhe é familiar; busquemos compreender, primeiramente, o que os próprios chineses queriam dizer. Além disso, o argumento de “agir como um chinês” - não o sendo - me parece um engano conceitual e cultural: utilizar um método de leitura e comentário chinês não torna meu agir como “mais ou menos sinizado”, e sim o de um melhor sinólogo, que busca compreender as estruturas deste pensar para traduzi-las de forma mais adequada para o nosso entendimento. Assim sendo, creio que uma desconstrução do texto desde o início realizada dentro dos nossos costumeiros critérios de análise cortaria a base sobre o qual este pensar se estrutura, tirando-lhe a autonomia e enquadrando-o numa realidade à qual não pertence diretamente.
Por conseguinte, conhecendo o sistema de análise chinês é que podemos compreender como funcionam os comentários tidos como “fundamentais” do Zhong Yong. O principal deles é o de Zhuxi (1130 - 1200 d.C.), que foi oficializado como O Comentário sobre o texto durante a dinastia Song (960 –1279). Nossa primeira leitura dos mesmos é decepcionante, e eles parecem não dizer nada, senão repetir o texto com algumas leves inserções. No entanto, foi justamente esta simplicidade que tornou os comentários de Zhuxi a linha principal de interpretação do Zhong Yong dentro do Neoconfucionismo. Zhuxi teve - na visão dos pensadores chineses – a coragem e a sapiência de escolher as partes mais importantes do texto, indicá-las e afirmar sua importância para a busca da justa medida. Embora muitas destas passagens já fossem bastante conhecidas, é a atitude de Zhuxi em torná-las claras, em determiná-las como o fio condutor do Zhong Yong que deram respaldo a sua análise. Não se podia, pois, reduzir o trabalho deste filósofo a algo como “escrever sobre o que todos já sabiam”; ele teria tido o mérito, na verdade, de “captar o que todos sentiam” e pôr em escrito. Como disse o próprio mestre Confúcio: “[sê] direto, mas não rígido” (LY, 15) pois “se as expressões de que nos servimos são claras e compreensíveis, isto basta” (Ibidem).
Os apontamentos de Zhuxi são uma das referências ao meu propósito de comentar o texto e inserir minhas notas específicas, embora ocasionalmente eu possa me servir de suas observações sobre o texto do Zhong Yong. Busco uma outra tradução, aquela que tem por objetivo ser intercultural – que dialogue, pois, com Aristóteles e com o pensar grego. “Eu, possuir o conhecimento? Longe disso! Mas, venha a mais humilde das pessoas fazer-me uma pergunta, e estou pronto, sem ter necessariamente a resposta, a examiná-la sob todos os ângulos até esgotar o assunto” (LY, 9), disse Confúcio. Há melhor guia?
 
O Texto[1]
Sobre o Zhong Yong, disse Zhuxi: “Aquilo que nunca se desvia é a centralidade, o que não muda é a medida (harmonia dos extremos). A centralidade é o grande caminho, o caminho do mundo; a medida, sua razão de existir. Este livro compreende as orientações que foram transmitidas por Confúcio aos seus discípulos. Zisi, neto de Confúcio, temia que ao longo dos anos estas orientações se perdessem; por isso, consignou-as num livro que transmitiu ao seu discípulo Mêncio. Zisi fala, no princípio do livro, sobre a razão que é uma para todos os seres humanos. No meio, se entrega a digressões sobre toda a classe de assuntos pertinentes; ao final, volta a tratar da razão única e de todos os seus elementos.[...] O saber deste livro é inesgotável, e seu estudo tudo frutifica. Se o lê perfeitamente, se o medita com atenção fixa, ainda que a vida toda se pusesse em prática suas máximas, essas não se esgotariam.” (ZYZJ, introdução).


[1] Para não me estender demasiado na apresentação do texto, questões referentes ao método, história do Zhong Yong, traduções diversas, etc são levantadas em anexo ao final do trabalho.