A Justa Medida no Pensamento Confucionista

O Dao é um conceito fundamental para os chineses. Sobre ele, todos os pensadores desta civilização moldaram suas propostas de compreensão e ajustamento do mundo (Zhang, 2002: 11-25). A forma pelo qual esta idéia foi interpretada, porém, era bastante flexível e diversa, e para chegarmos a concepção da justa medida de Confúcio e seus discípulos, precisamos antes investigá-la em seus aspectos mais amplos. Iniciemos, pois, sua análise pela abordagem etimológica do ideograma.
Dao significa O caminho, A via, em oposição a Lu (caminho, direção, em sentido mais amplo). Ele é formado pela junção da palavra shou (cabeça) e chuo (movimento, ir, além ), o que nos dá um significado aproximado de “levar adiante [mais além] a mente”.[1] Shou, no entanto, é uma representação pictográfica antiga, que se remete a uma cabeça de muar estilizada; Dao pode ser também, assim, a representação de um búfalo que segue instintivamente o caminho, ou seja, que apenas segue o ritmo de sua existência, em harmonia plena com o que o circunda.[2] Ambas as considerações são importantes para os pensadores chineses, pois enquanto a primeira idéia entende que o Dao pode ser buscado de maneira relativamente ativa e lúcida, a segunda pressupõe a idéia de uma ação isenta de movimento intelectual (wu-wei ) para que o Dao possa ser vivenciado, sentido;
“Uma vez que o Dao se liga à noção da espontaneidade, o Sábio não deverá desenvolver a cultura ou a inteligência, mas imergir num estado de vacuidade mental, a fim de deixar campo livre à intuição e de não introduzir em sua alma a perturbação da multiplicidade, inevitável quando o conhecimento se torna vasto demais. A vacuidade desejada não equivale, porém, à Ignorância, [...]. Se o Sábio desejar seguir o modelo do Dao, deverá atingir um estado em que estará como que flutuando no vazio; ele se projetará, então, no Infinito (Chong) e deixará que, sem interferências, tudo se realize de maneira absolutamente espontânea (Ziran). Investigando as leis fundamentais que presidem à vida, ele retornará ao estado de pureza de uma criança e seguirá o curso da Natureza ainda em Essência, uma vez que a Natureza, tal como se apresenta aos homens, já constitui uma manifestação do Dao, um de seus aspectos criados e, aquém dessa fase já concreta, é preciso atingir o abstrato absoluto”, imutável, que lhe deu origem” (Jopert, 1979: 114).
Apesar de atraente pela sua natural interioridade, esta segunda concepção foi privilegiada, principalmente, pela escola dos daoístas, desde cedo associados a práticas religiosas e esotéricas de cunho folclórico que enfatizavam o fortalecimento do shen (espírito) e o desenvolvimento de uma percepção anímico-xamânica.[3]
Mas Confúcio - embora fosse, provavelmente, um profundo religioso - ateve-se a primeira interpretação, talvez buscando escapar das armadilhas que a mesma perspectiva religiosizante propiciava; “enquanto não soubermos servir aos vivos, como poderemos servir aos mortos? Enquanto não soubermos o que é vida, como saberemos o que é morte?” (LY, 11). Além disso, o mestre buscava um caminho acessível aos seres humanos, uma via plausível, possível de ser vivenciada no cotidiano; “não se pode [na busca do caminho] viver na companhia de animais e pássaros. A quem recorrerei, senão aos seres humanos? Se o caminho reinasse sob o céu, buscaria eu mudar alguma coisa?” (LY, 18); “viver incógnito a fim de perseguir seu ideal, praticar o justo a fim de propagar o seu caminho; já ouvi falar sobre isso, mas ainda não vi ninguém fazê-lo” (LY, 16). Como afirma Kaltenmark (1972: 20-21),
“quanto a si próprio, o filósofo tencionava ensinar uma moral ao alcance de todos; há sentimentos, como o amor filial ou fraternal, ou a amizade, que são comuns a todos os homens; Confúcio pensava que convinha a toda gente cultivá-los, para os poder comunicar pelo exemplo e pela palavra. E nisso residia também uma razão para não nos ocuparmos dos fenômenos que estão for a do nosso alcance, isto é, não só do mundo oculto, mas de todo o domínio da natureza, do destino que submete o homem e contra o qual seria vão e vulgar rebelar-se. O “destino” (ming) limita o poder do homem, mas este possui um domínio que não depende do mundo exterior, que é o da sua liberdade e do Ren. O sábio é o homem que reconhece a interdependência destas duas esferas.”
Neste sentido, os chineses admitem naturalmente que cada fórmula para atingir o Dao se conforma com a propensão de um ser. Por este motivo é que o dao humano pode ser aceito como o mesmo para todos (pois ele harmoniza o Li imutável e mutável), é diferente para cada um e, no entanto, não pode ser expresso por palavras, dele só podemos nos aproximar por teorias (DDJ, 1). Logo, à cada Jia (escola) caberia apenas formular uma proposta para acessar o dao (“meu caminho procede de um pensamento único que abarca o todo”- LY, 4); mas este último só pode ser atingido pelo ser, individualmente, na descoberta de seu próprio caminho (ou, de como o dao de sua natureza individual se harmoniza com o dao de natureza macro-cósmica). O Dao de Confúcio seria, assim, a prática do Ren  .
Mas o que é este Ren privilegiado por Confúcio? No sentido homeomórfico, ren pode ser entendido como humanismo, palavra que conjuga vários dos elementos presentes na idéia do ideograma, tais como amor, retidão, respeito, eqüidade, altruísmo, etc. A palavra, homófona de Ren  (pessoa, ser humano), é composta pela aglutinação deste caractere com o número dois, ou seja, ela representa duas pessoas juntas em comum acordo, em perfeita união. Para a prática deste ren é necessário, por conseguinte, que o ser moral (Junzi ) busque exercitar uma série de virtudes e também, que ele descubra seus limites íntimos de acordo com a regra moral; “aquele que não possui o ren é incapaz de persistir na desgraça e na bonança. O ser de ren não se acha cômodo senão quando pratica o ren” (LY, 4) pois “só o ser de ren é capaz do verdadeiro amor e do verdadeiro ódio” (ibidem). Aquele que pratica o ren busca, antes de tudo, a justa medida entre as coisas; “nos negócios do mundo, o ser moral não tem uma atitude rígida de recusa ou aceitação. O justo é sua regra” (ibidem) porque “o ser moral preza a virtude e o ser vulgar, os bens materiais; o ser moral traz consigo a lei e o caminho, o ser vulgar só pensa em privilégios” (ibidem). Este ser moral tenta encontrar a justa medida através de três elementos fundamentais: “o ren, que expulsa toda inquietude, a sabedoria, que dissipa toda a incerteza, e a bravura, que libera de todo o medo” (LY, 14) pois “o caminho do ser moral se orienta para o alto, e o do vulgar para baixo” (ibidem). Este ren se orientava por duas normas que Confúcio considerava como máximas; “não faça aos outros o que não quer que façam com você” (LY, 15) e “ame a todos, sem distinção” (LY, 12).
Tantas indicações assim parecem tornar o ren algo traduzível tanto em conceito como em método, mas o próprio mestre admitia: “não é fácil seguir o ren, como posso falar dele?” (ibidem). O ser moral deveria buscar evitar que “suas palavras excedam suas ações” (LY, 14), fazendo o “ver seus próprios defeitos e transformá-los em sua demanda” (LY, 5). Uma breve definição do mesmo não esclarecia muito; “[ren] é deferência, grandeza de alma, honestidade, diligência e generosidade” (LY, 17). A fim de resolver a questão do ren e sua conexão com o dao, Confúcio propunha então a via do estudo letrado (rujiao ) que haveria de ser consagrado por todos os seus seguidores como a fórmula ideal para se atingir o equilíbrio. “A lei do grande estudo consiste em desenvolver o princípio moral que recebemos do céu para renovar os seres humanos e encaminhar suas ações em direção da perfeição. Conhecendo o ideal, há uma certeza; a certeza dá serenidade; a serenidade favorece a meditação; a meditação ao juízo, o juízo ao êxito.” (DX, 1) Estudar é estabelecer uma ponte entre o externo e o interno, para que o ser possa determinar de forma precisa sua maneira de conduzir-se. Sua meta última é a sabedoria, sem a qual o saber diletante nada serve; “estudar sem refletir é inútil; refletir sem estudo é perigoso” (LY, 2). Tal sabedoria remete-se justamente a descoberta da justa medida que o ser deve possuir nas ações e sobre as coisas. “Uma pessoa que prefere a companhia dos sábios, que se devota a pai e mãe, que coloca seu caminho a serviço do príncipe, que mantém sua palavra com os amigos, digo que tal pessoa, mesmo que lhe falte instrução, “estudou” (LY, 1). Eis o conflito bem apontando por F. Jullien entre a Sabedoria e a Filosofia, posto que a primeira é tomada como um saber “ideal” em contraposição a segunda, que buscaria “conhecer as coisas como são” (Jullien, 2000: 29-30). Como afirmou o mestre; “a natureza que sobrepuja a cultura é falha, e a cultura que sobrepuja a natureza é pedante. Só a harmoniosa combinação delas é que fomenta o ser moral” (LY, 6). Esta armadilha conceitual poderia capturar o pensamento o de Confúcio, se este não estivesse disposto a encontrar um meio de atingir o dao pelo método totalmente razoável da instrução, como ilustra poeticamente; “uma pessoa desperta pela poesia, aperfeiçoa-se pelos rituais e se completa na harmonia da música” (LY, 8). O pensar chinês necessita de eficácia (ou, a idéia de que pode ser vivenciado, aplicado na prática) para se considerar válido, e esta eficácia surge na descoberta da propensão. Confúcio propunha, assim, uma via pelo qual o ser humano poder-se-ia conhecer através da prática das artes e das letras[4], despertando sua sensibilidade interior (e, conseqüentemente, seu melhor proceder, ou seja, sua propensão). “Concentra tua vontade no caminho, apóia-te na virtude, modela teus atos pelo ren, e tira prazer das artes” (LY, 7); “Quem quer se aperfeiçoar, começa por regular seu interior [...] quando o espírito está perdido, ele olha mas não vê, ouve mas não escuta, come mas não sente sabor. Isso mostra que o aperfeiçoamento de si mesmo exige um grande domínio íntimo” (DX, 7).
Despertado o íntimo o ser moral pode então, finalmente, praticar o ren e atingir o dao. Mas, como dissemos, cada ser têm seu próprio dao; como se portam, então, as prescrições confucionistas diante desta variabilidade?
Muito pouco regulatórias, as indicações deixadas por Confúcio parecem apontar, na verdade, para a idéia de que a justa medida está na igual possibilidade dos extremos (Jullien, 2000: 29). Não há uma pré-determinação total do que deve ser seguido, mas a apresentação de uma fórmula pelo qual o ser humano pode encontrar a sua justa medida: “sê teu próprio mestre, e pouco erros cometerás” (LY, 4); atente-se a si próprio e encontrará seu dao: “na banheira de Tang[5] havia uma inscrição que dizia; renova-te todo o dia, e renova-te, e renova-te” (DX, 2); “corrigir as paixões consiste em dar retidão à alma” (Ibidem, 7), pois isto permite que “o ser moral conheça o justo, enquanto o vulgar se perde no proveito” (LY, IV). Quem descobriu a justa medida jamais se desvia (LY, 2), pois o verdadeiro conhecimento é “saber que se sabe, quando se sabe, e saber que não se sabe, quando não se sabe” (ibidem). “A virtude da justa medida, haverá algo de mais elevado? Ora, há muito tempo é coisa rara entre as pessoas!” (LY, 6) Ela consiste, justamente, em ser sábio – alguém que, na visão confucionista, pratica e compreende o caminho. Como afirma o Liji (Manual dos Rituais); “a razão pelo qual um sábio é capaz de olhar o mundo como uma família e a sociedade como uma pessoa é que ele não cria regras arbitrárias; procura, antes de tudo, conhecer a natureza humana, definir as propensões dos seres e chegar a uma noção bem clara do que seja bom ou mau para todos. Eis o que o capacita.[...] A criatura humana é produto das forças do céu e da terra, da união de yin e yang, concretizada no qi e manifesta pela presença dos cinco agentes. Por isso esta criatura é o centro de tudo [...].” (LJ, 9)
Ainda que estivesse enquadrado numa determinada normação que Confúcio julgava ser indispensável para a ordenação social e para o desenvolvimento pessoal, o ser tinha de buscar por si próprio o que era correto; “O Mestre disse: como era grande a sabedoria de Shun! Shun era por índole curioso, e gostava de conversar e perguntar. Ignorava o que era ruim e valorizava o que era bom. Tocou os extremos das coisas, inferiu o meio e o aplicou para seu povo. Este era o grande Shun!” (ZY, 6); “Este era Hui! durante toda a vida procurou a justa medida,e quando a alcançou, agarrou-a com as mãos, guardou em seu peito e nunca mais a abandonou.” (ZY, 8).
Por estas indicações podemos, portanto, inferir que a justa medida proposta por Confúcio é o ponto onde se encontram a prática do ren e o dao, onde se articulam o interno e o externo, onde o ser moral pode ser ele mesmo em comum acordo com o que o circunda. Esta é a fórmula proposta pelo mestre, que acreditava poder alcançar a centralidade harmoniosa através do estudo das ciências letradas (ou “humanas”). “Para o junzi, a única maneira de civilizar o povo e instituir bons costumes sociais é pela educação” (LJ, 18); “só por meio da educação, pois, alguém pode se tornar insatisfeito com o que sabe, e só quando tem de ensinar outro é que se dá conta do quanto seu conhecimento pode ser insuficiente. Insatisfeito com o que sabe, e sabendo ser este o motivo dos seus males, ele busca então aprimorar-se.” (ibidem)
A justa medida é tocar os extremos para inferir o meio ideal. Não é, assim, um “meio-termo” estipulado a priori, que quase sempre leva ao fracasso pela incapacidade dos seres em cumprirem metas que lhes são estranhas e que, via de regra, estão fora de suas capacidades normais; “Ranqiu disse; não que eu não ache excelente o caminho do mestre, mas faltam-me forças para seguí-lo. O Mestre disse: somente quem se extenua pode saber seu limite no caminho; tu, porém, já fixou seu limite antes” (LY, 6) A justa medida reconhece a diferença entre os seres, e sabendo-as, deixa que cada um encontre o seu próprio ritmo em harmonia com a natureza. (MZ, 6:15) Realizar a propensão é o meio mais eficaz de manifestar o princípio (Li), obtendo então o conhecimento do caminho (dao). A via de Confúcio se dá pela interconexão entre os seres, buscando o que há de comum e de diferente entre eles. Harmonizar-se, pois, é também encontrar a justa medida nas relações sociais, exercício contínuo da virtude ren. Quem deseja obter este conhecimento, deve então estudar as manifestações do ser por suas artes.  Inferindo o que há de comum, ele chega ao específico. Determina o que lhe é próprio e administra a si mesmo, obtendo eficácia em aperfeiçoar-se. Percebendo o caminho, o sábio pode ajudar outros seres a atingi-lo, mas apenas indiretamente; “o caminho do mestre se resume em exigência consigo mesmo e mansidão com os outros.” (LY, 4) pois; “não falar do caminho a uma pessoa suscetível de compreende-lo é maltratar alguém; falar do caminho a uma pessoa incapaz de compreende-lo é maltratar as palavras. O sábio não maltrata nem pessoas nem palavras” (LY, 15). Isto é, o dao só pode ser compreendido, de fato, interiormente e individualmente; e a justa medida é tanto via como manifestação daquele que o compreendeu.


[1] Wilder & Ingram, 1974: 39 (Wieger N. 160) de Xushen, Shuo wen jiezi (I. d.C.)
[2] Ibidem.
[3] Sobre o tema do daoísmo como filosofia e religião, podemos encontrar boas referências em Granet, M. O Pensamento Chinês, 1997; Maspero, H. Taoísmo y Religiones Chinas, 2000; Larre, C. O sentido de transcendência entre os chineses, 1978 e Ching, J. O senso religioso dos chineses, 1978 (cit. in biblio).
[4] As seis artes estudadas pelos confucionistas eram o conhecimento ritual, a música, escrita, arqueria/cavalaria, história/poesia e matemática.
[5] Fundador da Dinastia Shang, 1766-1122 a.C.