O ZHong Yong - Capítulos 17 a 33

Capítulo 17

O Mestre disse: “como era grande a piedade filial de Shun! Era um sábio virtuoso; sua dignidade foi a de um filho do céu (=imperador); sua riqueza se estendia pelos quatro mares; seus ancestrais receberam sacrifícios, e seus filhos e netos conservaram estes sacrifícios [por séculos]”.
Assim é que sua sabedoria o conduziu infalivelmente a esta dignidade imperial, a obter prosperidade, a ter este renome e longevidade.
É assim que o Céu, produzindo todos os seres, lhes favorece em suas disposições particulares. Tal como a árvore, quando bem plantada, cresce; sem raízes, porém, se abate e morre.
Diz o Tratado das Poesias:
“Admirável e amável Príncipe,
Como brilham suas virtudes!
No trato com o povo e os magistrados
Recebe suas dádivas do Céu
Protege, assiste, investe
[e] distribui estes benefícios
e o Céu os renovará”.
Evidente, pois, que esta grande sabedoria conduziu-o infalivelmente a obter o mandato do Céu.
Comentário: Todos os seres têm uma propensão natural que os favorece na realização do particular. Shun descobriu a sua e tornou-se imperador, obtendo do cosmo o mandato celeste (ou seja, o direito de governar). A proposta deste capítulo é exemplificar que, aquele que descobre sua propensão íntima (shi), pratica a justa medida e atinge sua eficácia pela sabedoria pode realizar qualquer coisa, até ser o governante máximo de uma nação.

Capítulo 18

O Mestre disse: “Somente o Rei Wen foi livre de toda inquietação! O Rei Ji foi seu pai; o Rei Wu foi seu filho; o que o pai empreendeu, o filho continuou. O Rei Wu prosseguiu com as obras dos reis Tai, Ji e Wen; e somente uma vez vestiu seus trajes militares, e todo o império o acompanhou. Nunca perdeu seu renome, e sua dignidade era a de um Filho do Céu (Imperador). Sua riqueza se estendia pelos quatro mares, seus ancestrais recebiam sacrifícios, e seus filhos e netos conservaram estes sacrifícios [por séculos].”
“O Imperador Wu recebeu o mandato do céu ao fim de sua vida; o Duque Zhou continuou as obras de seus predecessores (Wen e Wu). Elevou a condição de reis os ancestrais Tai e Ji, oferecendo-lhes o sacrifício destinado ao Filho do Céu”.
Estas são as regras rituais que se estendem aos príncipes, nobres, oficiais e gente do povo. Uma regra para os funerais foi traçada; quando um nobre morria e seu filho era apenas um oficial, os sacrifícios que este lhe rendia eram os de um nobre e o luto, de um oficial; quando  um simples oficial morria e seu filho era um nobre, os sacrifícios que este lhe rendia eram os de um oficial, e o luto, de um nobre. O Luto de um ano era destinado aos nobres, e o de três anos ao filho do Céu. O luto por Pais e Mães tem a mesma duração [três anos], sem distinção entre os nobres e o povo.
Comentário: Neste capítulo Zisi busca demonstrar que a prática da justa-medida leva a difusão da virtude pela exemplificação. Uma seqüência de soberanos antigos conduziu vida do povo de forma virtuosa, e por isso seus nomes residem na posteridade. Suas obras se manifestam na construção de uma moral sólida e correta, exemplificada pela prática do luto, e se desdobram pelo tempo.


Capítulo 19

O Mestre disse; “Que a piedade filial do Rei Wu e do Duque Zhou se estenda longinquamente! Esta Piedade Filial, apta a continuar as vontades de seus pais, persevera em suas obras. Na Primavera e no Outono, eles (Wu e Zhou) restauravam o templo dos ancestrais, dispunham os utensílios rituais, apresentavam suas insígnias e ofertavam alimentos da estação”.
“As cerimônias do templo ancestral determinavam a entrada dos assistentes à esquerda ou à direita, segundo sua classe e hierarquia, permitindo distinguir seus níveis de dignidade. Distinguindo os assistentes dos nobres, eram divididas as funções cerimoniais de acordo com o mérito cada um. Após a cerimônia, acontecia então o banquete, onde a cor dos cabelos permitia ordenar as pessoas por sua idade (=moços servir mais velhos)”.
“Reunir-se no mesmo lugar que nossos ancestrais; cumprir as mesmas cerimônias, tocar a mesma música que tocaram antes de nós; honrar os que nos honraram, amar a estes que nos foram tão próximos, servir aos mortos como se ainda estivessem vivos, e após sua desaparição como se ainda estivessem presentes; esta é a piedade filial!”
“[Pois] As cerimônias executadas em honra do Céu e da Terra servem ao Senhor do Alto. As cerimônias do Templo Ancestral sacrificam aos parentes mortos. Aquele que compreender o significado dos sacrifícios ao Céu e a Terra, dos sacrifícios outonais aos ancestrais, este pode governar o mundo tão facilmente como olhar para a palma da mão”.
Comentário: No pensamento confucionista, o respeito familiar é um dos pilares de toda e qualquer ordenação ética e social. A família é o primeiro núcleo onde se entra em contato com o aprendizado e a prática da moral; é onde exercitamos a virtude do comedimento, da paciência, do entendimento, estruturando nossas capacidades de viver em sociedade. Eis porque Zisi recolhe este trecho de Confúcio, defendendo a idéia de que não apenas a educação letrada, mas também, a formação moral dentro do lar são as bases para a busca do caminho. Sobre o papel das relações familiares, um pequeno tratado da época Han diz: “O Mestre disse: [...] a piedade filial é a raiz de toda virtude e o tronco do qual nasce todo ensinamento moral. [...] Nossos corpos – cada fio de cabelo, cada fragmento de pele – nós herdamos de nossos pais e não devemos atrever-nos a danificá-los ou feri-los. Este é o começo da piedade filial. Quando formamos nosso caráter mediante a prática da conduta filial, para tornar famoso nosso nome nas idades futuras e glorificar com isso nossos pais, este é o fim da piedade filial. Começa com o serviço aos pais, continua com o serviço do governante, e se completa pela formação do caráter” (XJ, 1).


Capítulo 20

O Duque Ai[1] quis saber o que constituía um bom governo.
Confúcio respondeu - "Os princípios de bom governo dos Imperadores Wen e Wu se encontram ilustrados nas tiras de bambu.[2] Quando tais homens existem, o bom governo floresce; porém, quando tais homens se vão, o bom governo desaparece”.
O Caminho dos seres humanos favorece o bom governo, tal como o Caminho da Terra favorece o florescer das plantas. O bom governo é como a rosa e os junco; é por isso que ele repousa sobre as pessoas. Aquelas pessoas ditas justas são assim chamadas graças ao seu caráter moral; o cultivo de sua personalidade moral se dá pelo Caminho (dao); e o cultivo do Caminho se dá pelo senso de humanidade (ren).
O senso de humanidade é o que faz as pessoas afeiçoarem-se aos que estão próximos; a equidade os equilibra.
Honrar as pessoas de valor é a prática da equidade.
A ordem de afeição dos que estão mais próximos e os diversos graus de respeito correspondentes ao valor das gentes são engendrados pelas regras do comportamento social.
Por isso, o justo não pode negligenciar sua personalidade moral; se o fizer, não pode servir aos seus parentes; se não pode servi-los, não pode conhecer os seres humanos; não os conhecendo, não pode servir ao céu.
As vias comuns a todo o mundo são cinco, e os meios pelas quais eles se movimentam são três. Os deveres são os compreendidos entre o governante e o governado, entre pai e filho, entre marido e mulher, entre o irmão mais velho e o mais novo, e entre os amigos. São essas as cinco vias comuns a todo o mundo. Sabedoria, humanismo e coragem - são esses os três meios do homem, conhecidos por todo o mundo; e o são porque todos os põem em prática.
Seja Conhecendo isso por si próprio
Seja Conhecendo isso pelo aprendizado
Seja Conhecendo isso por duras penas
Quando o conhecimento é atento, ele é Um
Seja pela serenidade advinda da prática
Seja pelo interesse advindo do estudo
Seja pelo efeito de um grande esforço
Quando o resultado é obtido, ele é Um!
O Mestre disse: “o amor ao saber está próximo da sabedoria. O devotamento está próximo do humanismo; a sensibilidade à vergonha está próxima da coragem”.
Quem conhece estas três coisas sabe como cultivar sua personalidade moral.
Quem sabe cultivar sua personalidade moral sabe como governar os seres; quem sabe governar os seres sabe como governar as famílias e principados de todo o mundo. Ao conceder encargos às famílias e principados, existem nove regras a serem observadas: cultivar a personalidade moral, honrar os sábios, cuidar dos próximos, respeitar os grandes oficiais, atender estes mesmos oficiais, tratar o mais humilde como seu filho, trazer artesãos de todo o mundo, acolher estrangeiros e ter interesse pelo bem estar dos príncipes.
Ao cultivar sua personalidade moral (o governante), estabelece o caminho a ser seguido.
Ao honrar os sábios, ele não arrisca enganar-se. Ao cuidar dos próximos, não haverá ressentimentos familiares. Ao respeitar os grandes oficiais, ele não arrisca errar. Ao atender os grandes oficiais, ele mostra o respeito. Quando os humildes são tratados como filhos, se sentem encorajados. Quando ele manda vir artesãos de todo o mundo, sempre haverá produção (= trabalho e riqueza). Se ele bem acolhe os estrangeiros, eles afluirão para o seu reino. Quando ele tem interesse pelo bem estar dos príncipes, ele será reverenciado em todo o império.
Purificar-se pela abstinência e ter uma túnica perfeita; não seguir outro caminho senão o das regras de conduta; eis como cultivar a personalidade moral. Afastar conspiradores e banir a volúpia; fazer pouco da riqueza, mas dar tudo em troca da virtude; eis como encorajar pessoas de valor. Honrar sua posição, compartilhar seus reveses, dividir suas afeições e aversões: eis como cuidar dos próximos. Emprega-los somente em seu serviço: eis como honrar os grandes oficiais. Dar-lhes confiança e crédito; eis como atender os grandes oficiais. Empregá-los no momento conveniente e cobrar-lhes pouco imposto; eis como encorajar a gente humilde. Proceder a verificações, requisições e inspeções periódicas, retribuindo aos artesãos adequadamente os serviços; eis como estimular a produção. Recebê-los bem, protegê-los, valorizar suas aptidões e perdoar sua ignorância (dos costumes); eis como bem acolher os estrangeiros. Resgatar a posteridade gerações sem descendentes, reviver principados tombados, restaurar a ordem social e sustentar reinos em perigo, receber em sua corte príncipes e seus enviados e datas marcadas, tratando-os bem e dando-lhes poucos encargos; eis como se demonstra interesse pelo bem-estar dos príncipes.
Porque, ao conceder encargos às famílias e principados de todo o mundo, existem nove regras a serem seguidas, e o meio de pô-las em prática é apenas um;
Em todas as coisas, aquele mais preparado obterá mais sucesso.
O que estiver menos preparado fracassará.
Se determinarmos antes o que falar, não erraremos.
Se determinarmos antes o que fazer, não faliremos.
Se determinarmos antes como nos conduzir, não sofreremos.
Se determinarmos antes o caminho, não nos perderemos.
Se aqueles que estão numa posição inferior não obtêm a confiança de seus superiores, o povo não pode esperar ser bem governado.
Só há um meio de obter confiança para os superiores; se alguém não confia nos amigos, não confia nos superiores; só há um meio de obter a confiança de amigos; se alguém não confia em seus parentes, não confia nos amigos; só há um meio de obter a confiança dos parentes; se alguém, olhando a si mesmo, não sente confiança em sua sinceridade moral, não pode confiar em seus parentes. Só há um meio pelo qual alguém obtém a confiança de seu íntimo (sinceridade moral); Se ele obtém uma clara consciência do que é bom, ele obterá confiança em si próprio.
A sinceridade moral com si próprio é o Caminho do Céu; acender a esta sinceridade é o Caminho dos Seres Humanos.
Aquele que é sincero consigo mesmo chega ao justo (Centralidade) sem esforço, compreende sem pensar, e segue facilmente pela medida (Caminho); este é o sábio.
Buscar esta sinceridade consigo mesmo é acolher o bem dentro de si e o manter de forma firme; estudar para ampliá-lo, buscá-lo com precisão e raciocinar com atenção, discernindo-o com clareza, e o pondo em prática por completo em tudo que faz.
Há pessoas que não estudam, ou estudando, não buscam ampliá-lo, mas não o abandonam [o caminho]. Há pessoas que não o buscam, ou buscando-o, não fazem com precisão, mas não o abandonam. Há pessoas que não raciocinam, ou raciocinando, não o fazem com atenção, mas não o abandonam. Há pessoas que não o discernem, ou discernindo-o, não fazem com clareza, mas não o abandonam. Há pessoas, por fim, que não o põe em prática; ou pondo-o, não o fazem por completo, mas não o abandonam.
O que os outros fazem uma vez, elas fazem cem vezes;
O que os outros fazem dez vezes, elas fazem mil vezes;
Se alguém for capaz de realmente seguir este caminho, seja um tolo, ele se esclarecerá; seja um fraco, ele se fortalecerá.
Comentário: Neste longo capítulo, Zisi faz uma relação de todos os princípios norteadores da busca do caminho e da prática da justa medida. Tais estratégias e considerações sobre a ação moral e virtuosa estão espalhadas no Lunyu, no Daxue e no Liji, mas Zisi deseja aqui condensar todas estas propostas num encadeamento único e lógico, de modo a torná-las claras e viáveis em termos práticos. É assim, pois, que a prática da justa medida se manifesta em todos os níveis da sociedade; ela é articulação fundamental do indivíduo com o coletivo, fator harmônico da ordenação que manifesta o sentido cósmico da existência humana.

Capítulo 21

Atingir uma clara consciência do bem pela perfeição moral, a isto se chama natureza humana; atingir a perfeição moral por uma clara consciência do bem, a isto se chama instrução. A perfeição moral nasce de uma clara consciência do bem; e a clara consciência do bem nasce da perfeição moral.
Comentário: Pelo estudo, buscamos a perfeição moral; a perfeição moral decorre da compreensão da natureza humana e de uma clara consciência do bem.  Buscando conhecer o fundamento das coisas, portanto, podemos compreender que a prática da perfeição moral e o entendimento do bem se engendram mutuamente, formando o caminho e reproduzindo a virtude.



Capítulo 22

Somente os que possuem uma total perfeição moral podem manifestar por completo sua natureza humana; somente os que possuem uma natureza perfeita podem fazer aflorar a natureza dos outros; e apenas os que podem fazer aflorar a natureza dos outros podem fazer aflorar a natureza das coisas. Aqueles que podem fazer aflorar a natureza das coisas podem ajudar o Céu e a Terra em sua criação; podendo ajudar o Céu e a Terra em sua criação, podem, então ser como o próprio Céu e a Terra.
Comentário: Quem atinge  perfeição moral compreende o fundamento de todas as coisas. Atinge, enfim, o conhecimento sobre as Leis do Céu e da Terra (leis cósmicas, ou leis da natureza) e conquista o poder de promover o bem e a virtude por entre os seres. Por isso é dito que o sábio é como o Céu e a Terra.

Capítulo 23

Os que vêm logo depois dos sábios perfeitos são aqueles que conseguem atingir o domínio de um aspecto de sua natureza; através dela, ele podem atingir a sinceridade moral. A [busca] da perfeição os conduz ao conhecimento; o conhecimento os conduz a manifestação; a manifestação os conduz a iluminação; a iluminação os conduz ao movimento; o movimento os conduz a modificação; a modificação os conduz a transformação. Somente aqueles que conseguem atingir a sinceridade moral, em todo mundo, conseguem realizar transformações.
Comentário: Zisi atenta aqui às pessoas que chegam a possuir uma grande gama de conhecimentos, mas não conseguem (o não sabem)  aplicá-los em seu desenvolvimento pessoal e moral. No entanto, estas pessoas, que conseguiram desenvolver alguns aspectos de suas propensões (shi), podem vir a dominar com profundidade a atividade que executam, e isso poderá lhes abrir uma porta para a compreensão do caminho. Mas é necessário busca-lo, pois isso faz parte do desejo de conhecer.

Capítulo 24

O Caminho da perfeição permite, num estágio avançado, conhecer o futuro. Quando um reino ou uma linhagem está preste a surgir, necessariamente aparecem bons augúrios; quando um reino ou uma linhagem está preste a desaparecer, necessariamente aparecem maus augúrios. Estes presságios se manifestam pelas varetas ou pelas tartarugas, se traduzindo em movimentos diferentes em seus quatro membros. Quando o bem ou o mal hão de chegar, eles podem ser previstos. Quando [o momento] é favorável, vai-se adiante; quando é desfavorável, [também] vai-se adiante; isso porque a perfeição moral é, num estágio avançado, como a dimensão do próprio espírito.
Comentário: Aquele que consegue entender os fundamentos e as conseqüências dos atos humanos pode inferir o desdobramento de uma determinada circunstância histórica ou social. Aqui, Zisi atribui ao sábio a capacidade de decodificar, com maior precisão, os augúrios provenientes da consulta do Yijing (Tratado das Mutações) ou dos cascos de tartaruga. A adivinhação pelo casco de tartaruga pressupunha uma lógica binária: gravava-se no casco duas respostas ou duas previsões, e um bastão quente era aplicado, gerando rachaduras que indicariam a opção correta. Este método foi sendo suplantando pelo uso oracular do Yijing, que, tendo por base os oito guas (oito estados essências da natureza), gerava 64 padrões de energias diferentes, cada um tido como mais adequado a uma pergunta específica. Isso tornava o uso do Tratado das mutações muito mais sutil e complexo, o que levou o próprio Confúcio a elaborar um extenso comentário sobre os hexagramas e as linhas. O Yijing estava enquadrado num sistema lógico que o compreendia mais como um livro de ciência (a antiga e tradicional ciência chinesa) do que propriamente um texto esotérico, o que tornava a sua leitura correta um atributo de sábios e intelectuais, e não de xamãs ou religiosos.

Capítulo 25

A perfeição moral realiza-se por ela mesma; do mesmo modo, o caminho realiza-se por si próprio. A perfeição moral é o fim e o início de todos os seres; sem ela, nada existe. É por essa razão que o ser moral conserva-a como um valor. A perfeição moral é a realização por ela mesma, e também o meio pelo qual as coisas se realizam. Realizar a si próprio corresponde ao senso de equidade humana; realizar as coisas corresponde ao conhecimento. Esta é a capacidade de nossa natureza, o caminho que une o interno e o externo; por isso, em qualquer momento, ela está aberta [é mutável], adaptando-se [as circunstâncias].
Comentário: Mesmo que grande parte das pessoas ainda não tenha atingido a perfeição moral, nem por isso ela deixa de existir. Ela se manifesta pela geração de leis, costumes e hábitos que visam a preservação dos seres, pois a perfeição moral é o próprio caminho. Assim sendo, ainda que muitos não percebam, suas vidas são conduzidas pelo caminho, que mantém abertos vários acessos pelo qual os seres podem, em qualquer circunstância, iniciar a sua busca.

Capítulo 26

Assim, a busca pela perfeição moral, em seu estado supremo, é sem interrupção. Não se interrompendo, ele se estende indefinidamente; se estendendo, ela se manifesta; se manifestando, ela tudo abrange; tudo abrangendo, ela ganha amplidão e consistência; ganhando amplidão e consistência, ela adquire clareza e altura.
Amplidão e consistência são o que a permite conservar os seres; clareza e altura são o que a permite cobrir os seres; abrangência e extensão são o que a permite fazer os seres  existirem.
Amplidão e consistência são como a Terra; altura e claridade como o Céu; abrangência e extensão são ilimitados.
Sendo esta a natureza da sinceridade moral, ela se manifesta sem se mostrar, modifica sem fazer movimentos, chega ao fim sem ação. O Caminho do Céu e da Terra pode ser assim resumido numa fórmula: sua ação nunca é dupla, ela é perfeita, e engendra os seres de modo imensurável.
O Caminho do Céu e da Terra é amplo, consistente, alto, claro, abrange tudo, se estende ao longe.
O Céu, como podemos observar, é apenas uma massa brilhante e brilhosa; mas em sua extensão imensurável, o sol, a lua, as estrelas e as constelações nele estão suspensos, e todas as coisas são por ele abrangidas.
A Terra, como podemos observar, não passa de uma mão cheia de pó; mas em toda sua amplidão e consistência sustém as montanhas Hua e Yue sem recear seu peso; contém rios e mares sem deixar se desfazer, e todos os seres ela conserva.
A montanha, como podemos observar, é apenas uma massa de rocha; porém em toda sua amplitude e vastidão, as plantas e árvores nela crescem, os pássaros e quadrúpedes nela moram, e tesouros preciosos (=minérios) são nela encontrados.
A Água, como podemos observar, ao longe parece não encher um copo; mas, em suas profundezas insondáveis, tartarugas gigantes e crocodilos, todas as espécies de dragões, peixes e enguias lá vivem, riquezas e mananciais nela abundam.
No Tratado das Poesias está escrito:
“A Lei do Céu, como é profunda e jamais cessa!”
Por isso se diz que o Céu é o Céu.
“Ah, Como era pura a capacidade [moral] do Rei Wen”.
Por isso se diz que o Rei Wen era o que era: pureza [moral] que jamais cessa.
Comentário: Zisi faz uma importante ilustração do caminho; aquele que atinge a perfeição moral, advinda da virtude gerada pela prática da justa medida obtém a suprema profundidade sobre o fundamento das coisas. O conhecimento moral é a essência de tudo. Assim como o Céu abrange todas as coisas, um sábio pode alcançar o mais complexo dos saberes, pois nele reside a busca pela perfeição moral, a verdadeira sinceridade moral.[3]


Capítulo 27

Oh! Como é vasto o caminho do sábio! Transborda por todos os lados, alimenta todos os seres e, em sua elevação, toca o céu. Oh! Como seu domínio é amplo! [Ele abraça] os trezentos princípios rituais, as três mil regras de conduta! Ele espera por um ser que o ponha em prática. É por isso que se diz: “Quando o caráter moral está ausente, o caminho da perfeição moral não pode ser posto em prática”.
É por isso que o ser moral respeita a natureza de sua capacidade, ao mesmo tempo em que ele não cessa de estudar e de se aperfeiçoar. Expande seus conhecimentos a amplidão, e busca o sutil e o fim [das coisas]. Procura atingir o mais alto e o mais claro, ao mesmo tempo em que conduz sua vida pela justa-medida. Revelando o antigo, descobre o novo. Sincero e profundo, respeita as exigências rituais.
Portanto, quando está numa posição de autoridade, não é orgulhoso; na posição de subordinado, não é insubordinado. Quando há ordem social moral no país, seus ditos trarão prosperidade à nação; quando não há ordem social moral no país, bastará seu silêncio para garantir-lhe segurança.
Diz o Tratado das Poesias:
“Porque o sábio é esclarecido, ele pode preservar-se de todo o perigo”
É o que foi dito anteriormente.
Comentário: Em igual medida ao conhecimento que possui, um sábio adquire grande responsabilidade sobre o poder que advém de sua sabedoria. Por isso, ele toma um extremo cuidado com suas opiniões e conselhos; busca, sempre, o fundamento ético e moral de suas posturas, e tenta compreender de forma profunda o meio no qual reside e como ele se estrutura. Sabendo isso, ele se preserva e preserva os que estão ao seu redor, pois a prática do caminho moral, sem uma base realmente confiável, pode ser perigosa e infrutífera.

Capítulo 28

O Mestre disse: “um ser ignorante que se deixa levar pelo próprio julgamento; uma pessoa de nível inferior que espera agir com autoridade; alguém que, vivendo em nossa época, busca reviver costumes antigos; este atrairá para si um grande mal”.
“Somente o Filho do Céu pode deliberar sobre os ritos e determinar as medidas e fixar os caracteres da escrita. Hoje, em todo o mundo, as carruagens seguem as mesmas rotas, os textos são escritos nos mesmos caracteres, os condutores seguem as mesmas regras. Mesmo que alguém possua um cargo elevado, se ele não possui a capacidade moral conveniente, ele não pode se permitir inovar nos ritos e na música [=cultura]; e, mesmo que ele tenha a capacidade moral conveniente, mas não ocupe alta posição, ele não pode se permitir inovar nos ritos e na música”.
O Mestre disse: “eu posso falar dos ritos de Xia, mas os habitantes de Qi pouco podem testemunhar [sobre ele]. Eu estudei os ritos de Yin, e em Song eles subsistem; eu estudei os ritos de Zhou, e hoje estão em uso; são estes que eu  sigo”.
Comentário: O Ritual (Li), na concepção chinesa, não trata essencialmente de uma atividade religiosa, mas de um amplo conjunto de normações sociais que tinham por objetivo promover o bem estar da comunidade, fixar as hierarquias e harmonizar as relações humanas. Por isso, os ritos podiam incluir desde sacrifícios aos ancestrais a questões de etiqueta, teorias de expressão artística e musical, fundamentos da educação, etc. Estas normações aparecem no Liji, o Manual dos Rituais, que continha, inclusive, o Zhong Yong como um de seus textos. Por isso, Confúcio defendia a importância na manutenção das regras de conduta que ele considerava corretas, tendo como base seu fundamento moral. Podemos considerá-las muito mais como preceitos que propriamente leis, e nisso Confúcio buscava privilegiar a consciência do indivíduo sobre a execução do ato moral do que legislar sobre as conseqüências do mesmo. A prática da justa medida dispensaria, por conseguinte, a determinação de extensas regulações punitivas, mas para isso seria indispensável manter a noção de equidade advinda do conhecimento dos costumes sociais (Li) e da busca pela perfeição moral.
Capítulo 29

Para reinar sobre o mundo, são necessárias três coisas importantes; os ritos, os costumes e a escrita. Graças aos que cometeram os mais graves erros, mesmo aquilo que, num passado distante, foi muito bom, não pode hoje ser atestado; não sendo atestado, não pode suscitar adesão; não sucitando adesão, o povo não pode segui-lo; da mesma maneira, o que emana de uma posição inferior não pode ser honrado; se não é honrado, não pode suscitar adesão; se não sucita adesão, não pode ser seguido.
Por isso, o Caminho do soberano é fundamentado na personalidade moral dele mesmo, e é atestado por todo o povo; pauta seu governo nos três reis [=fundadores das três dinastias], e não se engana; legisla de acordo com o Céu e a Terra e não é contradito; afirmando-se perante espíritos divinos, não sofre censuras; mesmo que seja preciso esperar cem gerações até que venha o sábio [para confirmá-lo], ele não está sujeito a erros. Quando confrontado com os espíritos divinos, sem sofrer censuras, ele conhece o Céu [=o mandato celeste]; quando espera por cem gerações pela vinda do sábio que o vêm confirmar, ele conhece o homem.
Assim, tal soberano, quando se movimenta, o mundo segue seu caminho; quando se agita, o mundo segue sua conduta; quando fala, o mundo segue sua regra. Os que estão longe sentem sua ausência; os que estão perto dele não se afastam.
Diz o Tratado das Poesias:
“Sem aversão, sem preocupação também; assim, noite e dia, perpetuam sua glória”.
Não houve nenhum sábio-soberano que não fosse assim, se lhe foi feito o renome em todo o império.
Comentário: Aqui, Zisi repete a idéia da atitude moral como exemplo a ser seguido pela sociedade. O simples fato de um governante praticar a justa medida inspira o povo a fazer o mesmo, e este percebe naturalmente que o melhor caminho a ser seguido é o da virtude.

Capítulo 30

Transmitir os ensinamentos de Yao e Shun, seus ancestrais, seguir o modelo de Wen e Wu.
No alto, se regular pelo curso do Céu; em baixo, se regular pela alternância da Terra e da Água. Comparar-se ao Céu e a Terra que tudo contém e provê, que tudo cobre e envolve; as estações do ano, que mudam suas cores; ao sol e a lua, que brilham alternadamente.
Todos as coisas criam-se juntas, sem anularem-se umas as outras; seguem seu curso, sem se oporem umas as outras. As pequenas seguem o curso das ribeiras; as grandes, transformam. Isto é que faz a magnitude do Céu e da Terra.
Comentário: Todo o universo é regido por leis cósmicas derivadas do princípio de oposição complementar (o taiji, composto por yin e yang) que se engendram mutuamente de maneira cíclica. Compreender o caminho (dao) é compreender este ciclo, e a justa medida é o meio pelo qual o sábio se conduz no caminho. Neste capítulo, Zisi resgata o fundamento cosmológico donde se origina a relação entre os seres viventes, que vêm a constituir o cerne da moral.

Capítulo 31

Somente, no mundo, o sábio absoluto está na medida de possuir o entendimento, a vidência, a penetração e o conhecimento, de modo a poder exercer o domínio;
Ânimo, generosidade, doçura e paciência, de modo a poder fazer valer a compreensão;
Energia, força, durabilidade e resistência de modo a ser capaz de firmar-se;
Comedimento, gravidade, centralidade e retidão, de modo a se fazer responsável;
Ordenação, coerência, fineza e atenção, de modo a ser capaz de discernir.
[só o sábio é] Vasto, amplo, profundo, inesgotável como uma fonte sempre brotando, vasto e amplo como o Céu, e como as mais profundas águas.
Assim que um homem dessa força fizer sua aparição no mundo, todos o reverenciarão. Tudo o que ele disser, todos acreditarão. Tudo o que fizer, o povo ficará satisfeito. Desse modo sua fama e seu nome se espalharão e encherão todos os principados da Terra do Meio (=China), estendendo-se mesmo até os povos do norte e do sul, onde quer que alcancem os navios e as carruagens, onde a força do homem penetrar, onde quer que os céus abriguem e a terra sustenha, onde quer que o sol e a lua brilhem, onde quer que a geada e o orvalho caiam. Todos os que tiverem vida e alento o honrarão e o amarão. Portanto podemos dizer - Ele é igual a Céu.
Comentário: Este é o potencial do sábio, aquele que logrou alcançar o caminho e tomou conhecimento do fundamento das coisas. Suas capacidades parecem quase messiânicas, se este não fosse um ser humano; e, no entanto, como um ser humano destes pode não ser considerado especial? O poder do conhecimento reside em transformar as coisas; transformar, porém, é fazer com o que está errado seja corrigido, é novamente harmonizar os ciclos imutáveis com os mutáveis, fazendo manifestar o princípio primeiro das coisas (Li). Ao manifesta-lo, o sábio resgata o antigo e cria o novo. Neste capítulo, Zisi realiza a grande defesa do pensamento de Confúcio, colocando-o como o sábio que é igual ao Céu por ter obtido o conhecimento da natureza e transformado-o (ou, traduzido-o) em saber moral.

Capítulo 32

Somente [aquele], no mundo, que realizou sua perfeição moral, em estado supremo, pode pôr em ordem e ajustar as grandes relações da natureza, fixar os princípios fundamentais do mundo e compreender as leis pelo qual o Céu e a Terra se transformam e se reproduzem.
Senso moral insondável, Profundeza ilimitada, natureza celeste infinita; se não possuirmos em si o entendimento – vidência que constitui a sabedoria do sábio para chegar ao poder do Céu – como podemos ter este conhecimento?
Comentário: Este capítulo complementa a argumentação anteriormente apresentada sobre a conexão entre a prática da justa medida como via da perfeição moral e seu fundamento cosmológico. Diz Zhuxi: “[nestes capítulos, 31 e 32] se fala sobre as faculdades da natureza e da produção dos seres; trata-se nele, também, sobre a lei do Céu. Antes, falamos sobre as virtudes do ser humano perfeito; mas as virtudes de um ser humano perfeito só podem ser conhecidas por um sábio perfeito; [...] e é o sábio perfeito que atinge o ponto mais alto da perfeição moral,  a verdadeira lei celestial.” (ZYZJ, 32).

Capítulo 33

Diz o Tratado das Poesias;
“Por cima de sua roupa de brocado, ele usava um traje de uma só cor”, o que evitava a ostentação de qualquer adorno. Assim é o Caminho do ser moral, obscuro em seu cotidiano, porém cada dia mais ilustre; já o do ser vulgar, este é brilhante todos os dias, mas leva-o inevitavelmente a decadência. O Caminho do ser moral é duro, mas não é cansativo; é simples, porém alegre; terno e, no entanto, harmônico.
Aquele que conhece o distante e o próximo, de onde vêm e para onde vai, e que tem consciência da manifestação das coisas mais ínfimas, este pode acender a virtude.
Diz o Tratado das Poesias:
“Mesmo que o peixe mergulhe profundamente na água, ele pode ser visto”.
Assim o ser moral se examina interiormente para verificar se está sem defeitos, e se suas intenções não são reprováveis. O que o sábio não pode achar em si é aquilo que os outros homens não percebem em si mesmos.
Diz o Tratado das Poesias:
“Olhe em sua intimidade se não há nada do qual você possa se envergonhar, mesmo estando no mais ermo lugar”.
Assim o Ser moral se faz respeitoso, mesmo mantendo silêncio.
Diz o Tratado das Poesias:
“A oferenda foi apresentada, os espíritos se aproximaram - sem uma palavra, neste momento, toda contenda foi afastada”.
Assim o bom soberano não precisa oferecer recompensas para que o povo seja encorajado; e sem demonstrar cólera, não utiliza castigos para dominá-lo.
Diz o Tratado das Poesias:
“Ele não manifesta suas capacidades, e ainda assim todos os príncipes o imitam”.
Assim o bom soberano investe na vigilância de seu íntimo e o mundo todo entra em paz.
Diz o Tratado das Poesias:
“Guardo comigo a virtude que não faz barulho nem espetáculo”.
O Mestre disse: “entre os meios que possuímos de transformar o povo, o “barulho” e o “espetáculo” são extremos”.
Diz o Tratado das Poesias:
“Sua virtude era leve como uma pluma”
Embora uma pluma possa ser medida, o Caminho do Céu se completa sem sons nem cheiros; eis o estado supremo!
Comentário: No último capítulo, Zisi intenta reforçar a noção de buscar o justo e praticar o justo como o caminho do sábio. Zhuxi comenta: “depois de haver Zisi exposto, nos capítulos precedentes, o cerne de seu caminho com grande clareza, volta ao tema [da justa medida] para apresentar-lhe a base. Em seguida, nos ensina que temos que prestar grande atenção a nossas ações e pensamentos íntimos; prossegue dizendo que é fundamental pormos todas as nossas forças para alcançar esta sólida virtude que atrai o respeito e a veneração de todos os seres; e que devemos buscar procurar a paz e a abundância para todo a sociedade.[...] Sua intenção, ao volver assim aos princípios mais essenciais, é muito importante e profunda, pois busca inculcá-los no espírito do seu humano. Não deve o estudante esgotar todos os esforços de seu espírito para compreendê-los?” (ZYZJ, 33).


[1] Governador de Lu, onde Confúcio nasceu.
[2] Um dos antigos métodos chineses para a produção de documentos consistia em escrever num conjunto de tiras de bambu amarradas, formando o texto completo.
[3] Sinceridade Moral, ou seja, o desejo de conhecer e praticar a todo instante o que é moral e eticamente correto, e ter a  moral como princípio norteador de toda e qualquer investigação sobre a natureza. É  o que F. Jullien chamará de Autenticidade Realizante.