Por uma Conclusão Intercultural

Confúcio e Aristóteles estavam inseridos em mundos e épocas diferentes; uma condição que, para o pensar chinês, é pouco importante. Como acessar um conceito e aplicá-lo, este sim é o problema. No dao (ou via, método) escolhido para a sua inferência é que reside a plêiade de possibilidades sobre os quais se desdobra a sua leitura. Visto assim, a comparação entre ambos não tem um sentido histórico ou filosófico de simples aferição; ela se constitui numa análise de como se processa a identidade conceitual referente à justa medida.
Ao empreender então uma leitura do problema chinês a respeito do Zhong Yong, buscamos quebrar o monopólio de uma concepção de saber que se diz única por descender do Logos (nosso utópico “Ocidente”). Não existe apenas mesotes, nem os gregos foram os únicos. Não há também preeminência de um sobre o outro, mas sim (se dermos crédito aos chineses), a manifestação do imanente - o conceito - que espera ser revelado, posto que reside no ser, dele provém, e por ele se concretiza.
Neste processo, as diferentes linhagens do pensar definem o modo de sua manifestação, o alcance de sua amplitude, sua estrutura – origem, forma, aquisição....e pela correlação destes mesmos elementos, apontamos (ou não) para a identidade homoemórfica entre os conceitos. Esta “ida e volta” ao Oriente elabora o consciente jogo de investigação filosófica; a transposição de um mundo sobre outro, a descoberta de um novo paradigma (ou a re-descoberta...), e uma necessidade de deslocar-se constantemente do ponto de visão onde nos situamos para elaborar nossa leitura sobre a realidade a fim de perceber as múltiplas possibilidades que ela nos apresenta e oferece. È no vazio intercultural que se descobrem as possíveis equivalências, os homeomorfismos; mas não é o próprio vazio o gerador do real?...
Nosso trabalho é, então, uma tentativa de realizar esta análise intercultural. Ao lidar com duas tradições tão diversas, ele busca saber o que nos torna humanos, para além do corpo – a busca do pensar o cosmos, de transliterar o real em sistemas legíveis pautados no seu próprio gerador, o ser. Elegemos então um elemento desta imanência, o conceito da justa medida, para fazê-lo.
Situa-se a justa medida como uma tentativa ampla de definir no real uma concepção de centralidade que possa conduzir o ser humano em suas manifestações. Regular na moderação, preservar a vida, valorar o aspecto ético que estrutura as ações deste mesmo ser humano independendo de um fundamento transcendente; aspectos norteadores do conceito imanente que se revela pela medida justa, pela virtude, pela inferência do zhong yong - mesotes.
Mas na caracterização que aproxima dois modos de pensar tão diferentes (o chinês e o grego), o processo final da aquisição do conceito resulta numa leitura divergente. Tanto quanto elas se aproximam, no final redundam em conclusões específicas, calcadas nas estruturas de pensar que as manifestam. Nada tão dialético, como afirmaria o pensar chinês; o princípio é o mesmo, mas a manifestação é variável, posto que se regula pela mutação. Na própria tradição ocidental, a justa medida aristotélica será re-interpretada à luz de uma crítica severa que pouco espaço lhe concede na possibilidade de ser uma teoria eficaz: Gauthier (1973:69-73) afirmará, por exemplo, que a justa medida aristotélica nada mais seria do que fazer adequar a ação às regras morais; Barnes (1976:19-26), que a justa medida é apenas uma “doutrina de conselho moral”. Nenhuma descaracterização poderia ser mais séria, se não proviesse de dois importantes comentadores da obra de Aristóteles. Mas não é esta justamente a consideração à qual Jullien chama-nos a atenção? Perdeu-se no Ocidente o parâmetro para a elucubração de uma justa medida que possa ser real, palpável; e, embora haja ainda a possibilidade de se compreender a proposta aristotélica (Hobbus, 2004), é ela, ainda, aplicável, possível?
No distanciamento, enfim, que se dá pela interpretação última do conceito, Confúcio não abriu mão da anuência da sabedoria, que para ele seria a salvaguarda transformadora da concepção de justa medida e a decisiva idealizadora do aspecto identitário dos seres; eles não são somente iguais na forma, mas podem pensar o mesmo, atingir idéias similares, apreender a imanência. Nesta lógica processual em que se desenrola o pensamento chinês, a centralidade e a virtude serão articuladas ao variado, ao incerto, e a todas as coisas se aplicarão. Situam-se numa origem cosmológica, que tudo permeia.
Aristóteles, porém, circunscreve-se no círculo preciso da lógica formal, e tange a justa medida a uma fixação pontual que se aplica à conduta ética. Atém-se ao real que o fundamenta, e dele não busca sair. Limita-se até onde pode ir com segurança, mas deixa aberta uma falha que permitirá aos comentadores posteriores perderem a flexibilidade que caracteriza sua interpretação; e atendo-se a um sentido regulador e arbitrário das virtudes, estes encerrarão numa medianidade utópica o conceito da justa medida.
No conseqüente descompasso que se estabelece também entre sabedoria e filosofia, ambas terão então uma relação dicotômica quanto à sua pertinência para com a justa medida. Para os chineses, ela é e sempre será imprescindível, pois nela se vislumbra o princípio que rege o mutável e o imutável; para os gregos, um elemento gradualmente condicionado a sua grandiosa criação, a filosofia, que transliterará o real num encadeamento lógico cujo discurso a alijará de suas propriedades subjetivas. Em busca da verdade, o Ocidente perderá o senso de identidade entre os seres, privilegiando a investigação dos fundamentos das coisas. Os chineses guardarão um outro senso multifacetado desta realidade, se desprendendo das necessidades da metafísica e investindo nesta “lógica de desenrolar” que naturaliza o processo de criação e entendimento do cosmo (SBI, 129-31).
A investigação da justa medida situa-se, pois, neste eixo axiomático onde aproximam-se e separam-se Ocidente e Oriente. Na identidade do conceito, vislumbra-se o real que fundamenta a existência dos seres; em sua variabilidade de formas e interpretações, atentamos às divergências que se criam e se estabelecem devido aos parâmetros adaptativos definidos pelas culturas para ler esta mesma realidade.
Mas, ainda assim, sobrepõe-se à possibilidade de transcender no real, e auferir por entre a humanidade a via da moderação. Tendo por base essa premissa, obtém-se a condição de discurso necessária à admissão do pensar como uma condição natural e intercultural dos seres, que possibilita a transformação, a queda das barreiras que se interpõem - pela ignorância e pelo desconhecimento – no curso do diálogo civilizacional. A justa medida aqui, portanto, não serve somente como exemplo, mas como motivo e fim ao mesmo tempo; pois nela se exemplifica a anuência do saber humano, que antecede a toda e qualquer criação.
Assim, enfatizando o papel deste saber, buscamos atravessar e demolir o obstáculo natural da diversidade, possibilitando a transformação. Ou, nas palavras do velho mestre;
“Os que vêm logo depois dos sábios perfeitos são aqueles que conseguem atingir o domínio de um aspecto de sua natureza; através dela, ele podem atingir a sinceridade moral. A [busca] da perfeição os conduz ao conhecimento; o conhecimento os conduz a manifestação; a manifestação os conduz a iluminação; a iluminação os conduz ao movimento; o movimento os conduz a modificação; a modificação os conduz a transformação. Somente aqueles que conseguem atingir a sinceridade moral, em todo mundo, conseguem realizar transformações” (ZY, 23).
Como o Caminho do Céu é generoso!