Da Origem da Justa Medida – Ergon e Xing

Para aceitarmos que existe uma identidade conceitual entre a justa medida confucionista e aristotélica, é necessário saber antes se elas são provenientes (ou não) de uma mesma origem, e em que plano esta situa-se. Como vimos na primeira parte da tese, para os chineses os conceitos são imanentes ao ser, pois derivam cosmologicamente do princípio (Li) que nos manifesta como tal – e sendo assim, estamos propensos (Shi) a acessá-los quando uma série de fatores nos conduz para esta possibilidade. Por conseguinte, o pensar chinês admite naturalmente que um conceito possa surgir em qualquer sociedade, lugar ou tempo, e o modo pelo qual ele é inferido decorre das circunstâncias ou do método empregado para isso.    
No caso grego, a idéia de justa medida surge de maneira específica no Livro II da Ética Nicomaqueia. Aristóteles havia se convencido de que a função (ergon) do ser humano reside em atingir a felicidade advinda do conhecimento (eudaimonia) (Bastit, 2002:197). A plena eudaimonia seria o desempenho da alma segundo o logos, pois o ser humano é o único animal que o domina. Conseqüentemente, realizar-se consiste em adquirir uma excelência moral e intelectual baseada na percepção do que é virtuoso (Arete) (Muzzelec, 1998:29); virtude esta construída através de ações dianoéticas – ou seja, geradas e/ou baseadas no logos (EN, X) – que visam o bem de fato (aghaton).
O primeiro ponto para onde Confúcio e Aristóteles convergem consiste justamente em reconhecer de onde provém e o que é esta capacidade de atingir a excelência moral. Para ambos, esta é uma propensão inata ao ser humano, dada pela sua própria natureza. É o que Mêncio determinaria como o fundamento da busca do bem, pois o humano seria, em princípio, bom (ou seja, a busca da felicidade, da realização – a própria possibilidade de buscar a virtude é, basicamente, uma virtude potencial). Esta mesma natureza do ser, por si só, não conduz a excelência moral. Mas está nela presente a capacidade de atingí-la pela prática da virtude, como afirma Aristóteles;
“É evidente, portanto, que nenhuma das várias formas de excelência moral se constitui em nós por natureza, pois nada que existe por natureza pode ser alterado pelo hábito. Por exemplo, a pedra, que por natureza se move para baixo, não pode ser habituada a mover-se para cima, ainda que alguém tente habituá-la jogando-a dez mil vezes para cima; tampouco o fogo pode ser habituado a mover-se para baixo, nem qualquer outra coisa que por natureza se comporta de certa maneira pode ser habituada a comportar-se de maneira diferente. Portanto, nem contra e nem pela natureza a virtude é engendrada em nós, mas possuímos a capacidade de adquiri-la; e a aperfeiçoamos através do hábito” (EN, II, 1, 1103a 20-25).
Esta concepção de natureza humana, similar a idéia confucionista e que os chineses chamam de Xing, é a estrutura específica derivada do princípio universal (Li) que concebe os seres humanos. “O Mestre disse: ‘Os poderes das forças invisíveis, como são evidentes! Eu as olho mas não vejo, eu as escuto mas não entendo, elas são a realidade e a tudo são inerentes!’[...] Em toda parte, elas estão presentes; as vezes sobre nós, as vezes ao nosso redor.[...]A atuação das forças invisíveis não pode ser suposta, como não pode ser ignorada. A manifestação daquilo que há de mais sutil e impossível de olhar em toda sua realidade, isto é o que ela é!” (ZY, 16). Atenhamo-nos, porém, que este comentário não estabelece um fundamento metafísico (na concepção chinesa) para a justa-medida -embora possa parecê-lo-, mas sim, a sua condição cosmológica (muitas vezes desconhecida dos estudiosos que analisam este fragmento). Sendo regulada pela mutação natural da matéria, Xing manifesta os seres segundo um gênero determinado (a humanidade, ou, um grupo específico de caracteres que diferencia o ser humano dos outros animais), mas o faz de forma diversa – ou seja, criando seres cujas propriedades são basicamente as mesmas, mas cujas formas (e por conseqüência, capacidade) são diferentes – o que pressupõe portanto que a aquisição da virtude é uma propensão do ser – mas depende do mesmo, individualmente, obtê-la; “É assim que o Céu, produzindo todos os seres, lhes favorece em suas disposições particulares” (ZY, 17), pois “O caminho do ser moral está em toda a parte, e não é encontrado” (ZY, 12).
Assim sendo, a excelência moral têm na humanidade sua gênese e seus meios; “o ser moral se examina interiormente para verificar se está sem defeitos, e se suas intenções não são reprováveis. O que o sábio não pode achar em si é aquilo que os outros homens não percebem em si mesmos” (ZY, 33). A constituição em si do que é ético reside unicamente no ser humano e na sua leitura sobre o cosmo. Por conseguinte, se está em sua natureza buscar o que é correto, aquilo que vêm a ser denominado virtude (De, para os chineses, mas exatamente a mesma Arete dos gregos) é por ele produzido como advindo da experimentação com a falta e o excesso;
“A virtude não se obtém nem pela natureza nem contra a natureza, posto que recebemos naturalmente o potencial da virtude, este que fixa um modelo natural de virtude retido no ato, e o modo artificial de acesso a virtude se desenrola entre dois extremos fixos pela natureza dela mesma. Nem pela natureza nem contra a natureza; tais são portanto os limites prescritos ao modo de realização da excelência humana” (Muzellec, 1998:38).
Em ambos os casos, portanto, a idéia da justa medida estaria diretamente atrelada à concepção da virtude como resultado desta apreciação dos extremos e da inferência de um meio ideal (em chinês, Dan ) resultante da investigação íntima; “A posição sincrônica da virtude como equilíbrio entre os dois extremos resume a posição diacrônica da virtude [...]” (Ibidem, p.51-2). Assim, este ponto de partida da justa medida se origina da própria relação do ser com o ato, sem nenhuma condição que a preceda senão o próprio fato dela ser uma medida humana, como indica o texto chinês; “A perfeição moral é o fim e o início de todos os seres; sem ela, nada existe” (ZY, 25) porque “A perfeição moral é a realização por ela mesma, e também o meio pelo qual as coisas se realizam” (ibidem).
A busca desta regulação do (e no) ato ético e moral consiste em atrelar de modo teleológico a prática da experiência social humana. Sendo ela constituída por uma coletividade de propensões individuais variadas, tanto Confúcio quanto Aristóteles cedo perceberam que seria impossível criar um código dianoético que pudesse definir a intensidade correta da prática da virtude. Preferiram inferir uma estrutura pelo qual se poderia obter esta mesma virtude e atingir uma noção de meio que não se situasse num “meio termo” comedidamente intolerável e pouco acessível.
Toda e qualquer idéia, pois, de que a justa medida se situa como um simples processo de “moderação” ou “medianidade” é errônea (Jiyuan: JCP, 2002: 337). A eudaimonia grega – a felicidade advinda do conhecimento -, assim como a sabedoria plena dos chineses (sheng) só pode ser alcançada através de uma experimentação com as limitações da natureza humana, usualmente condicionadas pelo processo de imposição cultural, como indica Confúcio;
“Atingir uma clara consciência do bem pela perfeição moral, a isto se chama natureza humana; atingir a perfeição moral por uma clara consciência do bem, a isto se chama instrução. A perfeição moral nasce de uma clara consciência do bem; e a clara consciência do bem nasce da perfeição moral” (ZY, 21).
A moral, instância por onde transita esta transformação nos valores e na virtude, deve ser tida inicialmente como a referência da ausência e do excesso; mas dada a sua diversidade (as morais variam de acordo com as culturas e os extratos sociais) devemos questionar se é possível relacioná-las independentemente da forma como elas estruturam suas alteridades.
Aristóteles admitia a idéia de pluralismo moral, embora o conceito deva ser utilizado com precaução (Canto, 2002:382-84). Suas explicações visavam compreender a produção das ações morais e de como, em circunstâncias idênticas, pode-se adotar comportamentos contrários (Muzzelec, 1998:42). Quanto aos chineses, este não viam problema em acoplar o princípio universalista do Li com um princípio teleológico de ação, posto que a diversidade é um efeito natural do movimento de mutação. Tudo é imanente nos seres humanos, como já o dissemos, e como deixa claro o mestre chinês;
“Zilu perguntou sobre o que é a força interior; O Mestre disse: você fala da força do povo do norte, da força do povo do sul, ou da sua força? Serem pacientes e gentis, sempre retribuindo com o bem -esta é a força do povo do sul, que os fazem uma gente de bem; viver sempre dispostos, armados e prontos a morrer sem medo - esta é a força do povo do norte, que os fazem uma gente forte. O sábio se acomoda a uma sem perder a outra, se mantendo firme em seu centro, sem se inclinar para nenhum dos lados. Assim ele mostra sua força! Quando o reino está em ordem, ele serve, não modificando a sociedade, e assim [ele] mostra sua força! Quando o reino está em desordem, ele serve até a morte, e assim [ele] mostra sua força!” (ZY, 10).
Decorre disto que a multiplicidade de civilizações (e por conseqüência, morais), é um efeito natural na realidade; mas há princípios que norteiam a formulação dessas morais, que podem ser encontradas no acoplamento da Natureza humana (Xing ou Ergon, numa possível aproximação homeomórfica) e Propensão (shi ). É assim, então, que a experimentação com os sentimentos, atitudes e comportamentos conduz a virtudes correlatas, pois essas são especificamente humanas;
“A ordem de afeição dos que estão mais próximos e os diversos graus de respeito correspondentes ao valor das gentes são engendrados pelas regras do comportamento social” (ZY, 20).
Quanto às virtudes, embora Aristóteles defendesse a existência de dois tipos: as intelectuais - advindas do ensino-, e as morais, advindas do hábito, (EN, II, 11103a 15). Ambas se engendrariam mutuamente através do processo de aprendizado e vivência com os extremos; “na prática de atos em que temos de engajar-nos dentro de nossas relações com outras pessoas, tornamo-nos justos ou injustos” (ibidem,1103b 15).
Este ponto de vista é sustentado igualmente pela percepção chinesa de que a educação inculca valores e idéias no ser, a fim de aprimorá-lo em sua propensão. Por conseguinte, ambas as visões pressupõem a existência de uma via, fórmula ou método, que conduza a condição de apreensão do conhecimento em condições tidas como ideais para propiciar ao ser uma interpretação racional de suas experiências. Este caminho - que em chinês denomina-se Dao, como vimos - propunha que a aquisição do conhecimento pelo estudo e pelas artes constituía em si o método mais adequado (na acepção da Escola de Confúcio) para preparar o arcabouço de saberes necessários e indispensáveis à formação do caráter de um indivíduo.
Intelecto, hábito e vivência são, pois, as condições que formulam e re-formulam continuamente a aquisição das virtudes e preparam o ser para atingir a excelência moral. O Método, ou Dao, é o caminho pelo qual se parte, se vive e se obtém a eficácia em realizar-se; “Realizar“ é, assim, mais preciso do que o simples “tomar consciência” (que também vale para o conhecimento): realizar é tomar consciência não do que não se vê, do que se sabe, ou mesmo do que se sabe demais – do que se tem diante dos olhos; realizar, em outras palavras, é “tomar consciência” da evidência. Ou, para nos atermos o máximo possível à palavra, “realizar é tomar consciência do caráter real do real” (SBI, 77). E de uma noção próxima de real será inferida, de modo semelhante, a noção de justa medida aristotélica;
“a presente investigação não visa, como outras, ao conhecimento teórico (não estamos investigando apenas para conhecer o que é a excelência moral, e sim para nos tomarmos bons, pois se não fosse assim nossa investigação viria a ser inútil), cumpre-nos examinar a natureza das ações, ou seja, como devemos praticá-las; com efeito, as ações determinam igualmente a natureza das disposições morais que irão criar-se, como já dissemos” (EN, II, 2, 1103b 30). 
Se todo o processo antes apresentado estrutura os modos para a obtenção da excelência moral, a conclusão desta situa-se no ponto axiomático onde a virtude se manifesta. Pela experimentação, obtém-se a noção do correto entre o que é excessivo ou ausente, noção esta que deve permear a existência daquele que busca ser tido como “ser moral”. Posto que ela parte do homem e se dirige ao homem, é uma formulação metodológica que prescinde de códigos a priori que permeiem e/ou justifiquem o caráter da ação moral. Ela é a medida, posto que é justa em sua constituição e execução para aquele que a pratica. Ela se funda na virtude, adquirida pelo aprendizado e pelo hábito;
“O Mestre disse: porque o caminho é pouco praticado, agora sei que os prudentes vão além, e os ignorantes nunca o alcançam; porque o caminho é pouco estudado, agora sei que os sábios buscam mais do que a centralidade, e os parvos não a alcançam. Entre os seres, não há um que não coma e não beba; mas raros são os que sabem apreciar o sabor” (ZY, 4).
Assim sendo, a justa medida está presente na natureza do ser humano, cuja função (ergon grego) é atingir a felicidade, o equilíbrio (em chinês, Dan) de acordo com a propensão de sua natureza. O Dao é o caminho, ou método, pelo qual se atinge a justa medida (Mesotes ou Zhong Yong) através da prática da Virtude (Arete, ou De  em chinês), cuja estrutura se dá pelo hábito e pelo aprendizado. “O cultivo de sua personalidade moral se dá pelo Caminho (dao); e o cultivo do Caminho se dá pelo senso de humanidade (ren)” (ZY, 20).
Tanto Confúcio quanto Aristóteles inferiram, portanto, que a origem da justa medida se situa no plano sócio-humano cujo fundamento é por si só a excelência em suas relações cotidianas e intelectuais. Tal condição em ambos os discursos nos permite então vislumbrar sua originalidade factível e - dialeticamente - sua flexibilidade adaptativa.
Tendo visto de que modo é construída então a noção da justa medidaem ambos os autores, passemos adiante para analisar as maneiras pelas quais chineses e gregos entendiam poder definir, atingir e praticar a medida da excelência moral - e das virtudes que a compõem.