Diálogos Interculturais

As tentativas de se estabelecer caminhos pelos quais Oriente e Ocidente possam dialogar têm sido variadas, e algumas notadamente bem sucedidas. Em geral, elas nunca dispensam algum conhecimento sobre ambas as tradições intelectuais, além de uma certa dose de bom-senso. A importância de seu estudo, porém, se verifica pela inevitável evolução científica e filosófica que têm proporcionado, através principalmente do fértil intercâmbio de idéias, que nos lega a miríade de visões possíveis sobre os objetos e conceitos.
Uma das propostas metodológicas mais interessantes provém do pensador indo-espanhol Raimon Panikkar, um dos principais representantes do movimento da Filosofia Intercultural. Esta corrente trata de discutir o próprio espectro da filosofia, sua abrangência e seu papel dentro do diálogo entre culturas. Como um de seus articuladores, Panikkar desenvolve a percepção de que o espaço para a interação entre saberes é, ainda, um espaço em aberto, vazio e que se reproduz continuamente:
“La filosofía intercultural se encuentra en tierra de nadie, en un lugar virgen que aún nadie ha ocupado, puesto que de no ser así ya no sería intercultural, sino que pertenecería a alguna cultura determinada. La interculturalidad es tierra de nadie, es utopía, está entre dos (o más) culturas. Debe guardar silencio. Pero como ahora se está poniendo de moda, y los arquetipos históricos se repiten, tengo el temor que nos sintamos como Moisés delante de una "tierra prometida" pero sin nadie que nos la haya prometido; quizá porque no existe – más que como utopía” (1996:125-148).
Este espaço vazio, o espaço do contato, do intercâmbio, é um espaço utópico pois seus agentes – os interlocutores – dependem, para se comunicarem, da vinculação de uma linguagem, e conseqüentemente de um conceitual que lhes é próprio:
“La interculturalidad es problemática. Cuando abro la boca, en efecto, me veo obligado a utilizar un idioma concreto, con lo cual caigo de lleno en una cultura particular; estoy en una tierra que ya es de alguien. Estoy en mi cultura, cultivando mi tierra, mi lenguaje. Y, si por encima de ello, debo hacerme entender por mis lectores, debo forzosamente entrar en una tierra común a todos nosotros. Si hemos en cierta manera vencido el espacio, puesto que hay lectores en todos los continentes de la tierra, no hemos podido dominar el tiempo, puesto que somos forzosamente contemporáneos. Por mucho que llevemos a cuestas la presencia del pasado y tengamos en cuenta el posible futuro, nos comunicamos en el presente y no podemos escaparnos del mito de la contemporaneidad, por muy polidimensional que ésta sea. Estamos forzados a la representación”(ibid.).
Assim, ao tratar de filosofia, a maior parte dos autores seguem um modelo estabelecido correspondente a este termo que é, especificamente, o modelo grego:
“Pero esta concepción particular es tributaria de la cultura dentro de la cual elaboramos la respuesta. He aquí, no ya un caso del llamado círculo hermenéutico, sino de un círculo filosófico previo. Sólo podemos preguntar lo que sea la filosofía dentro de una determinada filosofía, aunque las más de las veces esta filosofía no se explicita.(...) La mayoría de los cultivadores de la filosofía han tomado el modelo occidental como punto de partida, y nos han hecho saber que en otras culturas también ha existido y aún existe aquello que en Occidente se llama filosofía. Pero el concepto griego de filosofía, con todas sus variantes y reformas, sigue siendo el paradigma según el cual se procede a la búsqueda de lo que sea la filosofía en otras culturas.” (ibid.)
O problema, portanto, deste espaço intercultural reside na dificuldade em se realizar um diálogo que seja isento das referências advindas de seus participantes. Na verdade, isso é impossível. Mas esta característica só será um impedimento se os seus interlocutores buscarem apenas a comprovação de um saber a priori, fechando a porta para a flexibilização das idéias.
“Si se entiende entonces por filosofía aquella actividad intelectual que clarifica el uso de nuestros conceptos o que purifica nuestro lenguaje, no se buscará aquello que ejerce este papel en otra cultura, sino aquello que cumple con la función equivalente a la que la clarificación de conceptos y palabras ejerce en la primera concepción aludida.”(ibid.).
Eis aí o perigo do “círculo ontoteológico” de Hegel, que acabou gerando a hermeticidade do Logos. Tomada como ponto de partida, a filosofia só servirá ao pensador desavisado para fazer “filosofia” (em seu sentido restritivo e excludente). Como, então, estabelecer os limites e alcances do diálogo? Não se pode ceder, também, à histeria de ver “colonialismo” no simples uso de uma palavra – esta é uma herança, mas não a realidade em si à qual o termo responde. Filosofia, pois, pode englobar uma série de significados intercambiáveis que lhe permitem atuar com uma tradutora de um saber, contato que este seja seu objetivo. De sua ação, podemos extrair interpretações aceitáveis das teorias alheias à nossa tradição.
“Intentando seguir nuestra vía media que evita el solipsismo sin caer en el colonialismo, me permitiría describir muy provisionalmente el que hacer filosófico con una cierta validez intercultural de la siguiente manera: Filosofar podría entenderse como aquella actividad por la que el hombre participa conscientemente y de forma más o menos crítica en el descubrimiento de la realidad y se orienta en ella.” (ibid.)
Para solucionar a questão do diálogo filosófico, pois, Panikkar introduz a noção dos equivalentes homeomórficos.
O equivalente homeomórfico não é apenas uma “boa tradução” de um termo ou conceito. Também não é “a tradução” literal do mesmo. Se trata, na verdade, de um método pelo qual se busca entender a valoração e ação de um determinado termo em sua própria cultura de origem. Significa, por conseqüência, evitar associações simplistas com termos “semelhantes” que encontramos na nossa língua, e as interpretações que daí podem derivar. O Equivalente homeomórfico busca dar sentido a tradução de um conceito em sua especificidade, mesmo que isso signifique um leque amplo de opções. Panikkar mesmo afirma que, somente no sânscrito, poderíamos encontrar 33 noções que se aproximam homeomórficamente, ou seja, que se “equivalem”, ao termo filosofia (ibid.). E, no entanto, nenhuma será exatamente filosofia.
O objetivo de Panikkar é estabelecer um paradigma lingüístico pelo qual se possa exercer a ação investigativa sem incorrer em extremos. Mesmo o uso deste expediente (a noção de equivalentes homeomórficos) pode ser mal aplicado, se o pesquisador não possuir discernimento suficiente para evitar solipsismos e sobreposições culturais. Pode se cair vulgarmente numa análise multicultural, que pressupõe a existência de “saberes paralelos”, mas nunca intercambiáveis – uma das mais sutis e complexas formas de preconceito, na realidade (Semprini, 1999). O filósofo Filmer Northrop já havia atentado, em 1939, para este problema: “Esse denominador comum [o uso de uma terminologia para o trabalho filosófico] para a compreensão internacional não é proporcionada pela tradução proficiente, feita por poliglotas, dos textos em sânscrito, chinês ou japonês para a língua inglesa. Tradução necessária, mas não suficiente. Ninguém haveria de supor que a mais competente tradução da monografia original de Einstein sobre a Teoria Especial da Relatividade do alemão para o inglês nos daria uma base suficiente para comparar a teoria da relatividade com a mecânica de Newton. Também seria necessário um conhecimento de Física. Da mesma forma, o estudioso de filosofia comparada, para merecer confiança, deve ser mais do que um simples poliglota ou possuir mais do que traduções fiéis feitas por poliglotas; deve, além disso, ter um domínio profissional dos problemas, métodos e teorias da Filosofia” (Northrop, 1978:189).
Ainda assim, esta filosofia intercultural de Panikkar propicia uma maior clareza sobre os diversos planos intelectuais onde atuamos - quando ocorre o diálogo entre saberes diversos - se tivermos em vista como este se processa, e os cuidados que devemos tomar em realizar a interpretação dos mesmos. É, em si, a tentativa de resgatar esta função transformadora da Filosofia, em toda sua potencialidade crítica e investigativa, gerando um espaço aberto – o espaço intercultural – que continua sendo uma “terra de nadie, de la que todos podemos gozar siempre que no la queramos poseer” (ibid.).



[1] No processo de formulação das logias ocidentais, o século XIX viu assistir o nascimento de uma “Ciência sobre a China”, a Sinologia, que buscava açambarcar as diversas manifestações da cultura chinesa num processo único de compreensão, enquadrado pelo prisma científico. No entanto, esta nunca desfrutou de um status concreto perante as ciências tradicionais, sendo ora considerada uma especialização de outras cadeiras das ciências humanas, ora pleiteando um estatuto autônomo. A Sinologia buscou formular também métodos próprios de trabalho, embora sempre tenha mantido uma relação profunda com as discussões teóricas da Academia, o que impediu a concretização de uma “independência plena”. Sobre este tema, ver Kuijper, H. “Is Sinology a Science?” in China Report v.36, n.3 . New Delhi: Center for the Study of Developing Societies, 2000. p.331-54.
[2] Frithjof Schuon (Suíça, 1907-1998) foi um dos idealizadores da Sophia Perennis, corrente filosófico- esotérica que defendia uma unidade teórica e conceitual entre as linhas de pensamento ocidental e oriental baseada numa interpretação “religiosizante”. Teve uma grande aceitação nas décadas de 60 e 70 entre o público leigo, mas não foi bem recebida pela academia, exceto nos Estados Unidos – onde o autor britânico Allan Watts iria conseguir uma certa repercussão. Atualmente, a Sophia Perennis diluiu-se como proposta filosófica, servindo apenas de “base teórica” para o chamado “Movimento da Nova Era”.