O Conceito é o mesmo, mas a aquisição é diferente

Como vimos até aqui, a justa medida se origina e se estrutura a partir do caráter prático da ação e da construção da virtude. Por conseguinte, ela determina o modelo de práxis que serve ao propósito de obtenção da excelência humana (manifesta em seus aspectos morais e intelectuais) e permite a realização do indivíduo.
As considerações anteriormente apresentadas nos permitiram compreender como a justa medida é formulada e composta, razões pelas quais pudemos afirmar o seu caráter homeomórfico e conceitualmente identitário. No entanto, existe um aspecto singularizante na relação entre a medida confucionista e aristotélica; a variação de seu modo de aquisição. Tal consideração é um ponto fundamental em nossa análise, tendo em vista que esta diferença especifica e afasta, culturalmente, a leitura última que se faz da aplicação do  justo meio (zhong yong / mesotes).
As razões pelas quais esta diferenciação se concretiza podem ser encontradas no desenvolvimento constitutivo do pensamento chinês e grego, naturalmente distintos entre si, e inseridos em mundos políticos e sociais completamente diversos um do outro. Em nossos derradeiros capítulos, portanto, analisaremos este último aspecto da aquisição da justa medida e os fundamentos de sua divergência interpretativa.
 
A Centralidade como Medida
A idéia de justa medida - tanto na proposta chinesa quanto na grega - pressupõe a concepção da centralidade (zhong, meson) como ponto congruente entre as tensões de excesso e ausência, formulando o aspecto da medida correta que pode ser tida como justa e, conseqüentemente, virtuosa. A dificuldade na inferência deste ponto de centralidade consiste justamente em delimitar a separação entre o que é “moderação” e “medianidade”; a primeira, como um processo consciente e racional de escolha daquilo que é justo, e devidamente adaptado ao problema da individualidade; a segunda, como a determinação de um ponto mediano (ou seja, um “meio-termo”) no qual se fixa a idéia de correto, e onde a virtude deixa de ser modelar para ser arbitrariamente reguladora (já citado em Jiyuan: JCP, 2002: 337)[1].
No Zhong Yong, a justa medida é adquirida por meio da experimentação que conduz ao propósito da moderação, sendo atingida pelo indivíduo – dele parte a disposição prática pelo qual se realiza o conhecimento (zhi/frônesis) e, por conseguinte, atinge a sabedoria harmoniosa (sheng – o saber que concilia o interno e o externo);
“A Centralidade é o grande fundamento do mundo; a Harmonia, o caminho universal.” (ZY,1); “Como era grande a sabedoria de Shun! Shun era por índole curioso, e gostava de conversar e perguntar. Ignorava o que era ruim e valorizava o que era bom. Tocou os extremos das coisas, inferiu o meio e o aplicou para seu povo. Este era o grande Shun” (ibidem, 6); “Este era Hui! Durante toda a vida procurou a justa medida, e quando a alcançou, agarrou-a com as mãos, guardou-a em seu peito e nunca mais a abandonou” (ibidem, 8).[2]
Trata-se, portanto, d’um processo adaptativo, no qual a centralidade é uma para todos (ou seja, há um princípio que estrutura a centralidade de forma universal, que é a moderação) e, ao mesmo tempo, uma para cada um (ou, que de acordo com o princípio universal que molda cada ser com uma propensão específica). Confúcio conclui um outro elemento, pois, nesta concepção de moderação; a possibilidade do meio deslocar-se segundo o contexto, adaptando o fluxo da ação, mas mantendo o caráter individual daquele que a executa.
Tal proposta pode parecer ser incongruente, mas o pensar chinês – como pudemos estudar na primeira parte – se estrutura num processo criativo contínuo e mutável, que por conseguinte privilegia a adaptação à circunstância. Isso não significa perder o paradigma do que é correto (caso contrário, o indivíduo seria desprovido de um “caráter”, ou seja, ele não poderia possuir uma plena sinceridade moral), mas sim, observar o momento, conhecer as tensões entre o excesso e a falta e a partir daí, inferir a centralidade e observar a possibilidade de adequar-se a ela ou não.
O mestre deixa claro que o sábio é aquele que se adapta sem nunca deixa de ser o mesmo; ele segue o fluxo das fases, observa a prática dos costumes e se transmuta, mas não se modifica; “A vida do ser moral é caracterizada pela justa-medida, a do ser ignorante pela desmedida. A justa medida caracteriza um ser moral, pois ele se mantém, todo o tempo, em sua regulação; o ser vulgar, porém, é insaciável em sua desmedida” (ZY, 2). O próprio Confúcio deu exemplo disso, quando necessário (LY, 3).
Tal concepção é desenvolvida devido ao aspecto de transformação que formula a estrutura do pensar chinês. Não há como inferir uma única centralidade, senão um princípio de centralidade; por isso, a própria justa medida se assenta sobre um conjunto de virtudes modelares que determinam o propósito das ações; mas estas se ajustam ao caráter daquele que a pratica, segundo o contexto e a sua intenção;
“O ser moral conforma-se à condição de sua vida, e nada aspira além dela. Na riqueza e honraria, ele se conduz como alguém rico e honrado. Na pobreza e humildade, ele se conduz como pobre e humilde. Entre os bárbaros do Oeste ou do Norte, ele vive de acordo com as conveniências. Em meio as maiores dificuldades, ele se conduz adequadamente às circunstâncias, satisfeito consigo mesmo. Elevado, ele não pisa os inferiores; em inferioridade, ele não busca o favor dos grandes. Ele se remete somente a sua força interior, e nada lamenta; louva o Céu acima e respeita os seres abaixo” (ZY, 14).
Assim é que o ser moral (o sábio) mantém, pois, o seu caráter em meio a adversidade.
Citemos um outro exemplo, de sentido mais prático; se convidado para uma festa onde provavelmente os convivas se embriagarão, o que cabe a um sábio de hábitos “comedidos” fazer?[3] Recusar o convite ou ir à festa e embebedar-se? A opção de ir à festa e não desmedir-se parece a mais incômoda, posto que lhe traria um mal-estar natural advindo de seu deslocamento; logo, tanto a recusa em ir quanto ir à festa e ficar bêbado são oportunidades de centralidade igualmente válidas, dado que se adaptam ao momento, as circunstâncias e experiência. O caráter, portanto, da ação, é determinado por aquele que a realiza; “Todos as pessoas dizem "eu sei", mas ao caírem numa rede, armadilha ou cilada nenhuma delas sabe o modo de escapar. Todos dizem "eu sei", mas ao encontrar a justa medida, não conseguem mantê-la por mais de um mês“ (ZY, 7). A virtude reside em sua intenção, em sua sinceridade moral. E a medida, por conseguinte, desloca-se no espaço e transita no plano das tensões; afinal, a desmedida é mutuamente tido como incorreta, e não virtuosa; mas não hão ocasiões em que o excesso é consentido? Aliás, como é possível ser moderado se não se conhece os extremos?
Há aqui, porém, um problema; existe algum contexto em que o excesso ou a falta podem vir a se tornar a justa medida (abandonado-se a virtude como modelo da moderação), posto que esta centralidade se desloca?
O discurso confucionista recorre neste ponto a uma tautologia eficaz; o virtuoso é definido exatamente pela moderação entre os extremos; se assim não fosse, não seria a justa medida; desta forma, ainda que a centralidade se desloque, ela é uma e tem de estar de acordo com o que é virtuoso; se não estiver, não consiste pois numa centralidade correta; ou, se pudermos recorrer ao caso do sábio embriagado, se ele o fizer no contexto correto, não perde o seu caráter, e se adapta a circunstância (atingindo uma centralidade); mas, se isto incorre na perda de sua retidão intima (ou seja, torna-se um hábito pernicioso a si próprio, ou é feito em ocasião inoportuna), ele não estará mais, pois, em seu curso (Dao). Visto por este aspecto, pois, até mesmo um sábio pode então ser, paradoxalmente, um beberrão (o que se dará, de fato, com alguns dos mais importantes e conhecidos intelectuais da antiguidade chinesa); contanto que ele não importune aos outros, e desde que o faça de forma consciente - seguindo as regras morais - quem poderá dizer que ele é desmedido? Devido a esta argumentação é que Mêncio acreditará na bondade inata do ser humano; “A chave para a centralidade e a harmonia do universo, assim como para nós mesmos, não deve, portanto, ser buscada longe. Estão dentro da nossa natureza. Desenvolver nossa natureza é realizar as virtudes a ela intrínsecas” (Chan, 1978a); pois a busca do ser pela harmonia e pela centralidade é que gera o que é justo; e o justo é o bem maior; logo, como pode haver um justo que não seja bom? Não pode haver; só existirão pessoas que não conhecem essas regras, que não experimentaram os limites ou, fazendo-o, não souberam constituir o conhecimento necessário para praticar o caminho (Dao). Assim, a justa medida é apenas uma, pois é a moderação; seu limite se estende pelos indivíduos, mas circunscreve-se aos mesmos, pois deles parte, reside e se reproduz nas virtudes. Não há, então, possibilidade da centralidade assentar-se no mal. Em contextos de crise ou em oportunidades de desmesura, o erro pode até virar uma “regra” usualmente praticada por muitos; mas ainda assim, os seres sabem que este é o erro, a desmedida, e não a virtude.[4] A própria palavra chinesa para “crise”, aliás, sintetiza bem esta condição.[5]
Eis aí, também, a importância da política e do rito que transparecem no discurso de Confúcio, e que Zisi reproduz no arranjo do Zhong Yong (ZY, 18, 19 e 20). Estes dois aspectos regulatórios não são contrários ao modelo adaptativo da justa medida; na verdade, os confucionistas os tratam como mecanismos sociais construídos pelo próprio ser humano com vista à prática da virtude. São referências para o que é virtuoso, e o plano onde se dá ação justa. Pressupõe ainda um projeto pelo qual se articula a soberania como exemplificação da medida, através da articulação e da difusão da sabedoria no espaço público – no meio comum, pela educação e pelo convívio; no meio privado, pela experimentação e pelo aprimoramento íntimo.[6]
Como podemos observar, tanto Confúcio e Aristóteles aventaram a possibilidade (ou propriedade?) conceitual de articular a justa medida com a política, um meio de ação na propagação do saber na sociedade (ZY, 18-20 e 29). Esta condição tão somente existe, como já afirmamos, devido ao processo em que se estrutura a inferência da justa medida; ela parte do ser humano e a ele se destina. A virtude, assim, é seu objeto de empatia, coligando todos que se atém à moderação, e sua exemplificação pela política a difunde, incita à experimentação, delimita os parâmetros do justo, da centralidade (principalmente em ZY, 29).
Zisi, retomando seu Mestre, explana ainda sobre uma outra possibilidade, a do sábio adquirir a capacidade da vidência sobre a sociedade, a política e sobre si mesmo (ZY, 24). Devemos esclarecer que esta não é um “poder sobrenatural”, tal como usualmente se considera no Ocidente. Esta vidência é a disposição e a sensibilidade de acompanhar, inferir e presumir os movimentos do fluxo criativo que concretiza o contínuo processo de geração da natureza, tal como proposto na estrutura do pensar chinês. Tendo conhecimento das tensões que permeiam um objeto de análise, o sábio pode definir a direção do contexto em função de sua aproximação (ou afastamento) da centralidade (zhong, ou o ponto de tensão, dan) – ou ainda, para que ponto a centralidade se desloca. Seu método é basear-se na experimentação consigo mesmo e com os outros seres humanos, o que lhe dá o arcabouço necessário para reconhecer os padrões de movimento das coisas. É assim que ele pode “prever” o destino de pessoas, de governos ou sociedades. Sua vidência é uma análise profunda dos seres, fundamentada em sua experiência íntima com os limites e a moderação. Métodos oraculares como as carapaças de tartaruga e o Yijing (Tratado das Mutações) são recursos para sua investigação; mas o perfeito desdobramento de sua vidência se dá por uma capacidade própria, interna, independente destes mesmos meios: “a perfeição moral é, num estágio avançado, como a dimensão do próprio espírito” (ZY, 24).

A Cosmologia como fundamento
Como vimos, pois, a aquisição da justa medida (na visão confucionista) é inferida conceitualmente de modo semelhante à aristotélica, visando analisar as disposições práticas dos seres em relação à centralidade e à virtude. A razão pelo qual esta mesma centralidade se desloca, porém, no contexto – no caso a visão chinese, que difere aí da visão grega – situa-se na estrutura cosmológica chinesa.
Podemos retomar aqui a análise de F. Jullien com precisão; o pensamento chinês é processual, baseia-se numa (re)eprodução contínua e móvel da natureza. Os princípios fundamentais são, portanto, geradores (em estrutura); mas norteadores, quando aplicados ao contexto da ação. Isso porque a mutação (lembremos da regulação mutável-imutável que conforma a natureza) determina os aspectos flexíveis que permeiam a existência, incluindo aí a necessidade do ajuste de propensão (a capacidade especial do indivíduo) que estabelece a relação entre os seres. Por conseguinte, a centralidade deve necessariamente ser flexível, e ao mesmo tempo ser uma, posto que é uma virtude consignada na moderação, e estabelecida por um princípio (Li) de ação. Cabe ao sábio, pois, determinar a correlação precisa entre propensão-moderação-contexto, e inferir a justa medida. Com isso, ele evita se fixar em um ponto específico, e mantém seu caráter íntimo.
Com isso a sabedoria completa (sheng) adquire um caráter especial em relação ao conhecimento das coisas (zhi), dado que ambas se articulam e engendram uma resposta ao possível descompasso entre o interesse pessoal e o(s) ponto(s) correto(s) de moderação. Unindo (e privilegiando) a relação entre o íntimo e o externo, o que é comum aos seres e o que é específico do indivíduo, o pensar chinês evita determinar uma condição única e axiomática de virtude (ou, de justa medida), impossibilitando a fixação de uma noção arbitrária de centralidade; e privilegia a adaptabilidade, a liberdade e a flexibilidade.
Esta condição em que se apresenta o entendimento da centralidade - e sua relação com a sabedoria - deriva especificamente das possibilidades cosmológicas e processuais que estruturam o pensamento chinês, o que, pois, tanto a diferencia da concepção grega. Ainda que Aristóteles tivesse elaborado uma profunda cosmologia explicativa da natureza, esta parece não transparecer – ao menos diretamente – em seus escritos éticos.[7]
No entanto não devemos acreditar, por este motivo, que certas habilidades ou métodos desenvolvidos no Ocidente eram estranhos ou impossíveis de ser compreendidos pelos chineses. Como veremos a seguir, estes não desconheciam de modo algum a lógica formal e a inferência matemática - tal como proposto por Aristóteles - para a aquisição da justa medida; mas justamente neste ponto, a decisão chinesa por privilegiar uma concepção adaptativa deriva, justamente, das idéias de mutação sobre as quais se assenta a estrutura de seu pensar, o que lhe dá então este caráter diferenciado.


[1] Há uma relativa variação, entre os comentadores aristotélicos,  no modo como os termos são empregados para distinguir a idéia de “meio-termo” , “medianidade”, “mediedade”, “justa-medida”, “moderação”, etc.A escolha que fiz, aqui, pois, é arbitrária, tendo somente fins metodológicos. 
[2] Shun e Hui são os exemplos ideais da justa medida confucionista: o primeiro foi um dos mais afamados soberanos da Antiguidade lendária chinesa, o segundo, um pobre e humilde (porém, o preferido) discípulo de Confúcio. Ambos atingiram a sua justa-medida, apesar de situarem-se em planos materiais bastante diferentes. Confúcio ilustra com isso a força da medida moral, acessível a qualquer um, e encontrada naqueles que a buscam.
[3] Na verdade, porque o sábio deve ser comedido, ou esta é uma projeção que usualmente fazemos sobre a sabedoria? E como ele pode ser igualmente moderado se, a princípio, não experimentou o excesso e a falta?
[4] Aristóteles também utiliza um recurso semelhante no final do Livro II, 6 (1107a 20/25) – ambos não admitem a existência de uma justa medida que possa ser baseada no mal, no erro ou na desmedida.
[5] Em chinês, a palavra crise (Weiji) é formada por dois ideogramas diferentes, cuja conexão é ambígua. “Wei” significa problema, perigo; “Ji’ significa oportunidade, momento. Logo, Weiji pode significar tanto oportunidade de problema quanto oportunidade no problema – ou seja, na primeira acepção ela é utilizada para indicar um contexto onde o erro prevalece; na segunda, uma oportunidade de reconduzir o contexto ao que é correto, através de uma solução adequada.
[6] Embora a política, o rito e a vidência (como veremos a seguir) não sejam objetos definitivos em relação ao nosso objeto de estudo, acredito ser válido esta ligeira explanação sobre o tema, de acordo com as partes selecionadas que aparecem no texto do Zhong Yong – do mesmo modo como podemos vislumbrar, igualmente, a relação homeomórfica que Confúcio e Aristóteles estabelecem entre a justa medida e a política.
[7] Dies, A. Autour de Platon. Essai de critique et d'histoire. Paris: Belles Lettres, 1973.