O Zhong Yong - Capítulos 1 a 16

Capítulo 1

O que o céu concedeu ao ser é chamado Natureza humana (xing); seguir esta Natureza é o que se chama Caminho (dao); seguir o Caminho é o que se chama Educação (jiao).[1]
O caminho não pode ser abandonado por um só instante; se pudesse, não seria o caminho. Por isso, o ser moral (junzi) espreita o que seus olhos não podem ver e atenta-se ao que os ouvidos não podem ouvir.
Não há nada mais visível do que o que não se busca ver, nada mais palpável que o não-tocado. Por isso o ser superior presta atenção diligentemente a si mesmo.
Enquanto o contentamento ou a raiva, a tristeza ou a alegria ainda não despertaram, temos a centralidade (zhong). Quando estas paixões despertam de forma equilibrada e medida, temos a Harmonia (He)[2]. A Centralidade é o grande fundamento do mundo; a Harmonia, o caminho universal.
Quando a centralidade e a harmonia forem levadas ao seu ponto supremo, céu e terra estarão em seus lugares, e todos os seres prosperarão.
Comentário: O Caminho ideal do ser humano consiste em praticar a justa medida. Está em sua própria natureza buscar a justa medida, pois esta provém do céu (cosmo). O meio pelo qual se alcança esta justa medida é o estudo, a instrução, faculdade singular do ser humano que o permite dominar as paixões e encontrar a harmonia (medida). Apesar disso parecer óbvio, poucos conseguem enxergar ou praticar a justa medida; por isso, o sábio (o ser superior) busca aperfeiçoar-se sempre, e no dia em que todos compreenderem isso, o mundo estará em harmonia total. Disse Zhuxi: “[...] busquem em si mesmos os princípios que são ensinados no livro, e se apeguem a eles depois de tê-los encontrados, visando afastar todo o desejo depravado e efetuando ações virtuosas relacionadas à natureza humana original” (ZYZJ, 1) porque “a virtude jamais é solitária, ela atrai boa companhia” (LY, 4).


Capítulo 2

Zhongni disse: A vida do ser moral  (junzi) é a justa-medida (zhong yong), a dos ignorantes (shiao ren), a desmedida.
A justa medida caracteriza um ser moral, pois ele se mantém, todo o tempo, em sua regulação; o ser vulgar, porém, é insaciável em sua desmedida.
Comentário: Aquele que alcança a justa medida não pretende mais dela se apartar, simplesmente porque entende que ela é a forma mais correta pelo qual o ser humano deve se conduzir. Ela é a medida harmônica entre a ausência e o excesso – atributos que caracterizam aqueles que vive na desmedida, o imoral, o vulgar, o ignorante. Sua busca se dá pela excelência moral, obtida através da prática do que é correto e decorrente do estudo constante. Disse o Mestre Zeng: “As pessoas de bem, graças ao seu saber, têm amigos e, através de sua amizade, fazem prevalecer o ren (=humanismo)” (LY, 12).

Capítulo 3

O Mestre disse: a justa medida, que grandeza! Raros são aqueles que a atingiram em todo tempo.
Comentário: Este parágrafo aparece no sexto capítulo do Lunyu, e reafirma a idéia de que praticar a justa medida não é fácil, poucos se dispuseram a isso e menos ainda perceberam que nisto consiste o Caminho. Mas, como disse Confúcio, “é o ser humano que engrandece o caminho, e não o caminho que engrandece o ser humano” (LY, 15). É, portanto, uma busca individual.

Capítulo 4

O Mestre disse: porque o caminho é pouco praticado, agora sei que os prudentes vão além, e os ignorantes nunca o alcançam; porque o caminho é pouco estudado, agora sei que os sábios buscam mais do que a centralidade, e os parvos não a alcançam. Entre os seres, não há um que não coma e não beba; mas raros são os que sabem apreciar o sabor.
Comentário: Apesar de todas as experiências vulgares que um ser humano possa reunir, se elas não servirem à busca do caminho, apenas continuarão a perpetuar os próprios erros. Estudar a Moral e praticar a Moral; eis o que distingue aquele que segue o caminho e é chamado de sábio do que vive na desmedida, o parvo.

Capítulo 5

O Mestre disse; "Ah, como são poucos os que seguem o caminho”.
Comentário: Zisi reafirma, pelas palavras de Confúcio, a constatação de que são poucos que buscam a justa medida. Disse o Mestre: “Não se preocupe em ter suas capacidades ignoradas, preocupe-se antes em não tê-las” (LY, 14).

Capítulo 6

O Mestre disse: “como era grande a sabedoria de Shun! Shun era por índole curioso, e gostava de conversar e perguntar. Ignorava o que era ruim e valorizava o que era bom. Tocou os extremos das coisas, inferiu o meio e o aplicou para seu povo. Este era o grande Shun”.
Comentário: O antigo rei Shun é a exemplificação da justa medida para Confúcio. Ele infere o meio entre os extremos para melhor conduzir a vida pública e a sua própria. Não se trata, porém, de um “meio–termo”; veremos, adiante, que a justa medida se trata, antes de tudo, de orientar o que é correto, mas não impor uma regulação punitiva. Ela advém do estudo exaustivo das causas das coisas, objetivo perseguido por Shun.

Capítulo 7

Todos as pessoas dizem "eu sei", mas ao caírem numa rede, armadilha ou cilada nenhuma delas sabe o modo de escapar. Todos dizem "eu sei", mas ao encontrar a justa medida, não conseguem mantê-la por mais de um mês.
Comentário: A maior parte das pessoas vive uma vida acidental, na qual o seu conhecimento é construído de modo fragmentário. Quando são obrigadas a defrontar seus saberes com dilemas morais, perdem então seus rumos, se vêem incapazes ou impotentes para fazer o que é correto. O Ato moral é um ato de desejo e potência: cumprir, pois, a justa medida, demanda uma grande quantidade de estudo (pelo qual se entende os fundamentos da moral) e esforço (pelo qual se faz valer o que se aprende).

Capítulo 8

O Mestre disse: “Este era Hui! Durante toda a vida procurou a justa medida, e quando a alcançou, agarrou-a com as mãos, guardou-a em seu peito e nunca mais a abandonou”.
Comentário: Hui foi o discípulo preferido de Confúcio, um dos poucos que teria alcançado a justa medida. Sobre ele, disse o Mestre: “Hui era o único que praticava o ren com constância, enquanto outros chegam até ele apenas ocasionalmente e com muita dificuldade” (LY, 6); “Hui [...] suportava o que outros dificilmente aceitariam sem alterar sua serenidade. Na verdade, era alguém admirável!” (ibidem). Este capítulo mostra que, apesar de toda dificuldade, é possível atingir a justa medida. Hui atingiu-a pela prática do ren, o humanismo confucionista, e guardou-a no coração – que, na China Antiga, era a sede de todo o pensar e dos sentimentos.

Capítulo 9

O Mestre disse: “no mundo inteiro, [os seres] podem governar; podem recusar honrarias e proveitos; podem não se machucar, mesmo de pés nus; mas a justa medida, eles podem nunca encontrar”.
Comentário: Podemos alcançar uma grande evolução intelectual e material, ao longo de nossa vida, de forma natural e espontânea; mas a justa medida tem que ser buscada, pois senão, diante de uma “armadilha da vida”, não saberemos como agir (vide cap. 7). Compreender a justa medida é adquirir consciência moral dos atos, do modo correto de proceder. Sem isso, todo conhecimento e toda pujança serão sempre regidos pelos acidentes do excesso e da falta.
 
Capítulo 10

Zilu perguntou sobre o que é a força interior;
O Mestre disse: você fala da força do povo do norte, da força do povo do sul, ou da sua força? Serem pacientes e gentis, sempre retribuindo com o bem -esta é a força do povo do sul, que os fazem uma gente de bem; viver sempre dispostos, armados e prontos a morrer sem medo - esta é a força do povo do norte, que os fazem uma gente forte. O sábio se acomoda a uma sem perder a outra, se mantendo firme em seu centro, sem se inclinar para nenhum dos lados. Assim ele mostra sua força! Quando o reino está em ordem, ele serve, não modificando a sociedade, e assim [ele] mostra sua força! Quando o reino está em desordem, ele serve até a morte, e assim [ele] mostra sua força!
Comentário: Neste capítulo, Confúcio mostra que a justa medida não consiste em um “meio termo” entre o excesso e a falta, mas no proceder moral correto, proveniente da experiência, do estudo, e motivado pela força do caráter. Adaptado às circunstâncias, o sábio não perde a si mesmo, no entanto. Esta é a sua força moral. Comentou Confúcio: “a vida do ser humano busca a retidão. Sem isso, tende ao acaso” (LY, 6). Este capítulo explica, por conseguinte, por que a justa medida não pode ser imposta por uma regulação, posto que ela provém da busca individual; mas deve, sim, ser estimulada, pois ela consiste numa disposição moral do seres humanos. Mostra, também, que a justa-medida existe entre todos os povos, independente de suas culturas.

Capítulo 11

O Mestre Confúcio disse: “buscar o obscuro e o estranho, solitário, a fim de granjear um nome póstumo; eis o que eu não faço. O ser moral se conduz pelo caminho, mas alguns abandonam-no pelo meio; eu nunca poderia fazer isso. O ser moral se apóia sobre a justa medida, vivendo desconhecido dos outros sem se importar. Isto sim, apenas sábios são capazes de fazer”.
Comentário: Ninguém pode desejar ser dito moral se não vive em sociedade, pois a Moral é a essência da relação entre o indivíduo e sua comunidade. Buscá-la é o próprio caminho proposto por Confúcio: “Alguma vez já se viu alguém sair de casa sem passar pela porta? Como poderia então alguém deixar de passar pelo caminho?” (LY, 6). Ainda que o intuito do ser moral seja ignorado pelos seus próximos, ele não deve abrir mão de sua busca. Não deve se ater a estudos profundos que não tenham, em essência, um significado e/ou aplicação ética e moral. Todos percebem, um dia, que estão no caminho, mas não sabem levá-lo adiante ou não concebem sua importância. Sobre este capítulo, comentou Zhuxi: “[...] Agora podemos compreender que a finalidade desta parte do livro consiste em mostrar que a prudência advinda do estudo, a humanidade advinda da benevolência e o ânimo advindo da força do caráter são as três virtudes universais e capitais, são a porta por onde se entra no caminho que devem seguir todos os seres humanos. [...] Shun é a prudência advinda do estudo, Hui o humanismo advindo da prática do ren, Zilu a força de caráter. Se nos falta alguma destas virtudes, então não é possível estabelecer as regras da conduta moral, a justa medida, e nem aperfeiçoar a própria virtude.” (ZYZJ, 11).

Capítulo 12

O caminho do ser moral (junzi)  está em toda a parte, e não é encontrado. Maridos e Esposas podem apreender algo dele, mas existem coisas num nível supremo que nem o sábio pode compreender. Os mais parvos dos homens e mulheres podem praticar o caminho [em certa medida] mas, num nível supremo, nem mesmo o sábio é capaz de vivê-lo por inteiro.
Grandes como são o Céu e a Terra, ainda assim o ser humano está insatisfeito. [Para o ser humano] Nada é tão grande que não pudesse ser maior, nada é tão pequeno que não pudesse ser menor.
Diz o Tratado das Poesias:
"O Yuan (falcão) voa alto nos céus e os peixes mergulham nas profundidades".
Isto é, no mais alto do céu, ou no mais profundo oceano, o caminho pode ser encontrado. Assim, o ser moral pode iniciar sua vida nas coisas comuns, mas o nível supremo [da compreensão do caminho] está na amplidão do cosmo [céu].
Comentário: Algumas pessoas acreditam que praticar os deveres morais consiste em ater-se aos costumes sociais. Isso é apenas parte da moral. O verdadeiro sábio busca na investigação ética a formulação dos valores que embasam a Moral, e delas extraí o sentido verdadeiro da conduta moral. Por isso Zisi alerta para o fato de que, quando alguém acha que a moral se limita apenas aos hábitos e costumes, cai logo na insatisfação material e intelectual. Por isso o ser moral busca o verdadeiro caminho, presente em todo lugar e, no entanto, pouco vislumbrado pelos seres viventes.

Capítulo 13

 O Mestre disse: “o caminho não está longe do ser humano; se dele pudéssemos nos separar, então não seria o caminho”.
Diz o Tratado das Poesias:
"Ao moldar o cabo de um machado, o modelo não está longe".
Com um cabo de machado na mão como modelo para talhar outro cabo, do mesmo modo, o sábio se serve do homem para bem governar a humanidade. Tendo bem feito seu trabalho, ele o encerra.
Faz reinar, em si, a justa medida e faz crescer a reciprocidade, e não estará longe da lei moral. Não faça aos outros o que não quer que lhe façam.
Existem quatro coisas na vida moral de um homem, nenhuma das quais eu fui capaz de manter em minha vida. Servir meu pai como esperaria que meu filho me servisse; isso não fui eu capaz de fazer. Servir meu soberano como esperaria que um ministro me servisse; isso não fui capaz de fazer. Agir para como meus irmãos mais velhos como esperaria que meu irmão mais novo agisse para comigo; isso não fui capaz de fazer. Ser o primeiro a comportar-me para com os amigos como esperaria que eles se comportassem para comigo; isso não fui capaz de fazer.
Na prática das virtudes mais ordinárias e dos cuidados mais ordinários, esforce-se sempre para corrigir seus defeitos e economizar palavras. Adequar as ações às palavras, não é esse o comportamento do ser moral?
Comentário: Confúcio (ou Zisi?) demonstra o que consiste ser o princípio fundamental das relações humanas, a reciprocidade. Elemento ativo do amor (ai), base do humanismo (ren), a reciprocidade é a regra da eficácia no entendimento dos seres. Para conduzir um ser humano a verdadeira moral, apenas o próprio ser humano pode servir como exemplo. Confúcio toma a si próprio para mostrar o quão difícil é praticar a reciprocidade, mas aquele que busca praticá-la está no caminho certo. Nesta passagem, Zisi utiliza um trecho importantíssimo já apresentado no Lunyu e repetido em nosso trabalho: “Não faça aos outros o que não quer que lhe façam” (LY, 15).

Capítulo 14

O ser moral conforma-se à condição de sua vida, e nada aspira além dela. Na riqueza e honraria, ele se conduz como alguém rico e honrado. Na pobreza e humildade, ele se conduz como pobre e humilde. Entre os bárbaros do Oeste ou do Norte, ele vive de acordo com as conveniências. Em meio às maiores dificuldades, ele se conduz adequadamente às circunstâncias, satisfeito consigo mesmo. Elevado, ele não pisa os inferiores; em inferioridade, ele não busca o favor dos grandes. Ele se remete somente a sua força interior, e nada lamenta; louva o Céu acima e respeita os seres abaixo.
Por isso o ser moral vive tranqüilo, esperando por seu destino, enquanto o ser vulgar envereda por caminhos perigosos em busca de fortuna.
Mestre Confúcio disse: O tiro com arco é como o sábio; quando se erra o alvo, busca-se a razão em si mesmo.
Comentário: Zisi reitera o que foi dito no capítulo 10: a sabedoria em agir se adapta as circunstâncias, mas não perde nunca seu caráter original e moral. É possível buscar a justa medida em todas as coisas e lugares, pois ela provém do indivíduo, e não do que está ao redor. “O ser inteligente busca o movimento, o sábio o repouso; o ser inteligente pode viver feliz, mas o sábio que compreende o ren vive muito” (LY, 6). O sábio não pré-determina suas ações (Ibidem, 9), mas traz consigo a essência daquilo que considera correto e moral. Note-se aqui a referência à Arqueria, que consiste na base do ideograma Zhi (conhecimento, sabedoria); ser sábio é “acertar o alvo”, ou seja, ter conhecimento dos princípios que regem uma ação prática, e pô-los em funcionamento.

Capítulo 15

 A vida do ser moral é como o Caminho, ao qual se parte com pressa, ou a um ponto alto, que se busca alcançar pondo-se em pé.
O Tratado das Poesias diz:
“O bom entendimento entre esposa e filhos é como um concerto de harpa e alaúde; quando a concórdia vive entre irmãos, esta harmonia é feliz e profunda. Estando em ordem a casa, rejubilam-se esposa e filhos”.
Mestre Confúcio disse: “Para um Pai e uma Mãe tudo então vai bem!”
Comentário: O caminho do ser moral nunca se esgota, por mais ávido que o sábio o busque. Disse Confúcio: “aprender é viver no desejo de nunca atingir o fim e de deixar o que já se ganhou” (LY, 8). Por isso ele é como partir com pressa, ou pôr-se de pé para alcançar um ponto alto. E, no entanto, é este aprendizado que proporciona a felicidade, ilustrada pela analogia da harmonia familiar; se há entendimento perfeito entre o que habitam um lar, que mais pode desejar um pai e uma mãe? Para o sábio, que pode haver de melhor do que a felicidade proporcionada pela própria sabedoria?

Capítulo 16

O Mestre disse: “Os poderes das forças invisíveis, como são evidentes! Eu as olho mas não vejo, eu as escuto mas não entendo, elas são a realidade e a tudo são inerentes!”
São elas que fazem os seres do mundo inteiro se purificarem pela abstinência e vestirem suas melhores roupas para os sacrifícios. Em toda parte, elas estão presentes; as vezes sobre nós, as vezes ao nosso redor.
Diz o Tratado das Poesias:
A atuação das forças invisíveis não pode ser suposta, como não pode ser ignorada. A manifestação daquilo que há de mais sutil e impossível de olhar em toda sua realidade, isto é o que ela é!
Comentário: O princípio (Li) está contido em todas as coisas, e por isso todas as coisas têm o seu dao (caminho). Por mais óbvio que isso pareça, ainda assim não percebemos que fazemos parte do cosmo, e que por isso temos um dao a cumprir. Chamemos de deuses, de natureza, de espíritos, forças invisíveis ou como for; o princípio de tudo só pode ser compreendido se alcançarmos o caminho.


[1] O verbo aqui utilizado é Jiao, que significa lecionar, instruir ou ainda, educar. Zisi utiliza a palavra em sentido ambíguo: significa tanto instruir-se quanto instruir outros. A explicação pode ser encontrada no Liji, Manual dos Rituais, onde no capítulo 18, o Livro da Educação, repete-se o conselho de Puyue que é “Ensinar é metade do aprender”. O sábio aprende e depois ensina; ensinando, aprende mais, e ambas as coisas engendram-se continuamente.  É, portanto, uma sabedoria de caráter prático, que busca eficácia em sua aplicação.
[2] Aqui entendida como harmonia entre opostos, ou seja, “medida”.