Respostas

Como vimos, antes de Hegel não existia discussão aprofundada sobre utilizar a palavra Filosofia para denominar os sistemas de pensamento asiáticos. A dificuldade, de fato, era dos europeus não os conhecerem suficientemente bem, o que lhes gerava dificuldades para enquadrá-las em uma determinada categoria. O Confucionismo, por exemplo, foi tido em alguns momentos como religião (no sentido monoteísta), ora como filosofia moral, ou ainda, como conjunto de supertições anímico-politeísticas! (Eliade & Couliano, 1999:95-101) Definí-lo, portanto, significava rever um método ou um conceito.
No final do século XIX, japoneses e chineses começaram também a diferenciar o pensamento ocidental do oriental. Um neologismo, Zhexue (em japonês Tetsugaku – ver o glossário) começou a ser empregado para designar as formas de pensar advindas da Europa, em oposição às clássicas Jia (escolas) que compunham a tradição oriental. Note-se que, antes disso, o pensamento ocidental era classificado igualmente como Jia, sem uma notória dificuldade em aceitá-las como um das formas do dao (caminho). O contexto colonialista impunha, porém, uma necessária separação, e a resposta veio a altura.
Em torno da década de 30, no entanto, alguns especialistas ocidentais e asiáticos começaram a construir um movimento de aceitação do pensamento oriental pela via filosófica. Isto significava demonstrar a validade do pensar chinês, japonês e indiano como filosofias através justamente das estruturas de análise ocidentais. A proposta consistia em identificar a presença dos conceitos e métodos filosóficos no discurso das antigas “doutrinas”, a existência de idéias que pudessem contribuir para o enriquecimento da Filosofia, e os processos pelos quais os valores intelectuais foram estabelecidos nestas sociedades.
Esta atitude reconhecia a anuência científica e política da filosofia como leitora destes saberes, mas possibilitava uma excelente oportunidade de gerar aceitação, no Ocidente, dos sistemas de pensamento asiáticos. Tratava-se, grosso modo, de corromper a hierarquia utilizando seus próprios expedientes.
Ateremo-nos, aqui, ao caso Chinês. O início deste movimento partiu de vários lugares da China, simultaneamente, por meio de um grupo constituído por chineses educados em escolas ocidentais. O trânsito de que dispunham em cultura tradicional, e o domínio de línguas e técnicas estrangeiras forneceram-lhes uma base sólida para se apresentarem diante da academia.
Os primeiros (e mais conhecidos) representantes deste movimento são Wing-tsit Chan, Hu Shih e Fung Yulan. No caso destes três autores, a abordagem inicial sempre tratava basicamente dos mesmos pontos: apresentar a diversidade do pensar asiático, explicitar suas condições de funcionamento por uma aproximação com a terminologia ocidental e, por fim, definir suas singularidades, propondo sua validação. Como afirma Chan em um de seus artigos; “é incorreto considerar um sistema filosófico oriental como a filosofia oriental em conjunto; igualmente incorreto é ver num período da Filosofia oriental todo o curso do seu desenvolvimento. Como os antigos textos filosóficos orientais se encontram com mais facilidade e, portanto, são mais familiares, as filosofias orientais medievais e modernas têm sido consideradas - consciente ou inconscientemente - como que notas de pé de página da antiga Filosofia oriental. Nada, porém, está mais longe da verdade. Se percorrermos toda a história da Filosofia oriental, encontraremos muita variedade e mudança, de modo que o antigo período, embora muito importante, de maneira alguma é a história completa” (Chan, 1978:160). A grande incompreensão que se criou em torno da filosofia asiática “pode ser atribuída ao fato central de que ela vê a filosofia como um problema humano. Ela se dedica, primordialmente, à busca de solução final para os problemas humanos” (ibidem, p.165).
Hu Shih destacaria, justamente, que o problema de interpretação do Oriente não girava em torno da questão metodológica, mas sim do objetivo final de suas propostas. Um de seus principais trabalhos, The Developement of the logical method in Ancient China (1939) mostra que é perfeitamente possível enxergar os mesmos esquemas interpretativos da filosofia ocidental no discurso dos pensadores chineses. A forma dos textos serem apresentados, no entanto, respondiam a uma demanda específica das escolas; o texto serviria para atrair e despertar o pensar, evitando somente conduzí-lo, e propiciando a sua discussão dentro de uma proposta teórica subjacente, ao qual o aluno deveria em certa medida conhecer.
Por fim, Fung Yulan  afirmaria que “a filosofia chinesa acentua o que o Homem é, e não o que ele tem; que ela não dá muita importância à Epistemologia; que não está interessada no conhecimento pelo conhecimento; que não contrasta o Homem e o Universo; que não desenvolveu um sistema de lógica; que subordinou a Metafísica aos assuntos humanos; que discute extensa e completamente o problema de como viver; que não é sistemática na forma, porém no conteúdo; e que só é tradicional no nome e que é progressista” (Chan, 1978: 161 e Fung, 1937: 1-6). Ainda que Fung divergisse de Chan e Hu quanto à questão conceitual e sobre a importância da filosofia chinesa, todos concordavam que a busca da eficácia (ou, aplicabilidade) no plano real e o interesse pela condição humana eram os principais guias e diferenciadores do pensamento oriental em relação ao ocidental.
Na Inglaterra e nos Estados Unidos a Academia respondeu bem a proposta, reformulando a estrutura de seus departamentos de sinologia por esta linha de direcionamento. A Universidade do Havaí, ponto central do Oceano Pacífico onde subsiste uma grande comunidade chinesa, tornar-se-ia um dos pontos de referência destas discussões, principalmente através da consagrada revista Philosophy: East and West. W. Hocking deu uma definição precisa sobre este espírito crítico relativo ao pensar oriental:
“A Filosofia é, basicamente, uma questão de o que uma pessoa vê, e, em seguida, da sua capacidade de fazer uma conexão racional entre o que vê e o que, de alguma outra maneira, sabe; suas premissas são suas observações originais sobre o mundo. Assim, as pessoas que possam acrescentar alguma coisa à nossa visão são o apoio mais importante para o progresso em Filosofia. O próprio fato de o Oriente ter modos diferentes de intuição -  o que às vezes se coloca sob a forma enganosa de que há um abismo entre as mentalidades do Oriente e do Ocidente  -  é o que torna tão importantes para nós suas contribuições à Filosofia e as nossas para eles. É uma felicidade, sob este aspecto, que as Filosofias oriental e ocidental tenham-se desenvolvido separadamente durante tanto tempo. Elas ficaram consolidadas em sua maneira de ver as coisas. Cada uma se tornou a carta régia de uma civilização mais ou menos duradoura. Se a prova de uma filosofia fosse a durabilidade da civilização nela baseada, o Oriente sem dúvida teria muito mais autoridade”. (Hocking, 1978:21).
Inúmeros trabalhos históricos e filosóficos sobre a China iriam encontrar repercussão mundial após esta abertura. Um dos casos mais famoso, por exemplo, é a série Science and Civilization in China, organizada por Joseph Needham e publicada em Cambridge a partir da década de 50, que serviu de base – sem qualquer exagero - para a reformulação de toda a História da Ciência. Alguns outros nomes importantes poderiam ser citados para ilustrar o desenvolvimento desta corrente, cada qual com sua contribuição para o entendimento desta história chinesa através do pensamento ocidental, mas este não é um ponto fundamental. O problema é que esta linha continua a encontrar alguns obstáculos para sua aceitação e desenvolvimento; busquemos, por conseguinte, analisá-los brevemente.
O primeiro deles é a questão da terminologia (essencialmente predominante nos países anglófanos). Muito se contesta a inadequação da transliteração de termos chineses para as línguas ocidentais, provocando uma série de enganos interpretativos. Há, também, uma forte tendência à busca específica, nos textos chineses, de valores tidos como importantes na cultura ocidental, em detrimento daquilo que pudesse vir a ser de interesse legitimamente autóctone. Por fim, alguns poucos especialistas continuam investindo na tradução de textos inéditos, enquanto a maior parte da produção sobre temas filosóficos tem apenas repetido informações antigas, sem muito acrescentar, redundando numa abordagem superficial e pouco interessante da filosofia chinesa, que muitas vezes é confundida e suplantada por publicações de cunho esotérico e sensacionalista cujo principal atributo é apenas o de transmitir as deformações intelectuais propostas por autores desinformados.
Em contraposição a esta linha de estudo desenvolvida nos centros de língua inglesa, a Escola Francesa buscou abordar o problema do pensamento chinês por uma via completamente diversa. Sob a liderança de Marcel Granet, o mais famoso dos sinólogos franceses, desenvolveu-se a concepção de buscar compreender o pensamento chinês por si próprio. Isso significava afastar-se do problema “é ou não é filosofia” para demonstrar que o pensamento chinês possuía validade simplesmente pelo que representava historicamente, por sua profundidade conceitual (do qual os franceses adquiriram a consciência de seu desconhecimento) e pela construção de uma lógica alternativa à nossa. Esta orientação abriu uma nova perspectiva intercultural para a Europa, posto que ela se propunha a entender o cerne do pensar chinês, sua estrutura e funcionamento, e sua forma de lidar com o real – algo bastante distante do alcance da maior parte dos especialistas no início do século XX.
Em seu livro O pensamento Chinês, de 1934, Granet afirmava;
“A China Antiga, mais que uma Filosofia, teve uma Sabedoria. Esta se exprimiu em obras de características muito diversas. Raríssimas vezes assumiu a forma de exposição dogmática.(...) Aliás, quase nada sabemos de positivo sobre a História Antiga da China” (1997:13-4). [Este seria o tom da obra]; “As noções chinesas parecem diferir profundamente deste corpo de idéias diretivas que, para nós, corresponde à Razão. Como veremos, aquelas noções se ligam a um sistema de classificação que poderia ser legitimamente aproximado das “classificações primitivas”. Seria muito fácil atribuir aos chineses uma mentalidade “mística” ou “pré-lógica”, se interpretássemos ao pé da letra os símbolos que eles reverenciam. Mas, se considerasse estranhos ou singulares esses produtos do pensamento humano, eu julgaria estar incorrendo em falta com o espírito de humanismo e com o princípio de toda pesquisa positiva. Ademais, a injustiça que estaria presente num preconceito desfavorável demonstra-se pela análise de idéia diretivas; esse quadros permanentes do pensamento são calcados nos quadros de uma organização social cuja duração é suficiente para provar seu valor; é preciso que essas regras de ação correspondam de algum modo à natureza das coisas.(...) Talvez sejamos levados a uma apreciação mais equânime do pensamento chinês ao nos apercebermos de que a credibilidade das noções que lhes servem de princípios diretivos decorre, não da popularidade deste ou daquele ensino, mas da eficiência longamente comprovada de um sistema de disciplina social” (ibidem, p.26-7).
Com esta postura, a Academia francesa começava a se livrar da incômoda herança eurocêntrica que havia dominado o panorama dos estudos sinológicos ocidentais. No campo da Filosofia, a abertura gerada estimulou o interesse pela China, que se via desvinculada da necessidade de comprovar sua “validade científica” – a civilização chinesa possuía seu próprio valor, e por isso merecia ser investigada. A curiosa distinção empregada por Granet, “mais que uma filosofia, uma sabedoria” parece significar que este saber chinês, embutido em sua própria lógica, adquiriu uma eficácia comprovada histórica e intelectualmente, motivo pelo qual tal distinção só poderia ser feita por alguém, justamente, que tenha uma visão finita do que é filosofia. O pensar chinês é um conjunto completo, orgânico, com um ritmo autêntico de funcionamento, mas aberto à recepção de novas idéias - tidas como um princípio natural e endógeno ao ser humano. O pensar, pois, é imanente, e essa imanência é a própria natureza (Jullien, 1998b). Logo, como dizer que não há filosofia na China? E, no entanto, porque buscar filosofia na China? Hoje, ainda, esta orientação de Granet é uma pedra basilar da moderna sinologia.
Paradoxalmente, a concepção francesa propiciou o campo para o debate conceitual entre o pensar chinês e o ocidental através justamente de sua diferenciação. O aprofundamento no conhecimento do Oriente deu uma base mais segura para sua interpretação. A quebra de uma hierarquia intelectual a priori tornou possível o diálogo entre saberes diferentes, e tanto europeus quanto chineses conseguiram realizar um trabalho mais profundo e menos analógico. Ainda assim, vez por outra os sinólogos são obrigados a se defrontar com um pouco de preconceito requentado, derivado do desconhecimento persistente na filosofia sobre a estrutura destes sistemas de pensamento. Esta, aliás, foi a palavra empregada num dos títulos mais recentes do gênero, Histoire de la pensée chinoise, de Anne Cheng (1997-2003). Considerado um dos melhores manuais sobre o tema publicados nos últimos anos, a autora é obrigada a explicar a distinção que faz entre “filosofia” e “pensamento”, e porque optou utilizar o segundo termo simplesmente para evitar polêmicas estéreis que envolvessem a definição do que é “filosófico”. Utilizar a palavra filosofia significa ainda, para alguns especialistas, submeter o pensar chinês à hierarquia que determina a sua necessidade de comprovar-se válido para os nossos padrões. Como afirmam Deleuze e Guattari para explicar porque esta condição, “O Oriente ignora o conceito porque se limita a fazer coexistir o vazio mais abstrato e o ser mais trivial sem mediação alguma” (Deleuze & Guattari, 1991:90), o que constitui uma demonstração de desconhecimento latente sobre o que é o pensamento chinês, realizando-se as mesmas indistinções de sempre. Para além do problema de saber se o pensamento chinês é ou não uma filosofia, portanto, esquecemos que a própria filosofia, em suas perspectivas mais flexíveis e interculturais, pode-nos propiciar uma excelente via de acesso aos saberes que lhe são externos – desde que respeitada a condição básica de buscar o universalismo das idéias sem um solipsismo radical.
Em meio às propostas inglesa e francesa (cujo plano de fundo não ignora a ação intelectual dos próprios chineses, como Luxun e Guomoro), houve enfim o desenvolvimento de expedientes metodológicos para realizar o trabalho de diálogo entre Ocidente e Oriente. Nesta tese, empregaremos a abordagem de dois autores significativos para a compreensão do pensar asiático, François Jullien e Raimon Panikkar. Deles, faremos uma breve apresentação a seguir, atentando para como suas produções conjugam o melhor destas propostas acadêmicas e como elas contribuem na formulação de nosso objeto de estudo.