Vimos, anteriormente, a regulação da justa medida tem origem no próprio ser humano, ensejando a formulação de uma estrutura ética que independa de construções culturais e que vise, por fim, uma atitude ética que se caracterize pela excelência do ato em si e que obtenha a melhor conseqüência moral possível. Assim sendo, ela se constrói como um meio que prioriza a ascensão à prática da virtude, elemento fundamental da medida que se atinge pela experimentação com a falta e o excesso.
No entanto, é necessário saber como proceder para adquirir uma noção correta do que é a justa medida, e como ela se compõe. O problema que aqui se insere reside nas inumeráveis possibilidades que existem de se interpretar o que é justo, de como se dá este justo para o ser - e em sua relação aos outros - e, por fim, se é possível definir as virtudes como únicas ou dicotômicas em seu sentido funcional.
Posto que as virtudes tidas como essenciais para a execução daquilo que pode ser entendido como ato justo são adquiridas pelo aprendizado e pela prática (práxis), é necessário então que as noções do que é bom e do que é mal sejam inculcadas, a priori, no âmago daquele que busca vivenciar racionalmente o seu processo de experimentação (EN, II, 1, 1103b 5/10). Tal condição advém, a princípio, pela educação; e nisto confucionistas e gregos concordam de modo absolutamente igual.[1]
A educação é o pilar no qual se assenta a formação dos indivíduos, fornecendo-lhe os elementos básicos para a construção de seu caráter; aprender a “gostar do que é bom e desgostar do que é ruim” (EN, II, 3, §2 e X, 10, 1179b/20); para Confúcio, é o principal vínculo entre a natureza humana e a realização da propensão individual; “O que o céu concedeu ao ser é chamado Natureza humana; seguir esta Natureza é o que se chama Caminho; seguir o Caminho é o que se chama Instrução”. (ZY, 1).
No entanto, devemos saber de suas limitações, posto que ela não pode transformar o ser apenas pela sua imposição - os indivíduos nascem com o potencial, mas suas faculdades se desenvolvem com o tempo (EN, II, 1, §4). Embora forneça uma série de recursos e habilidades que permitam ao indivíduo realizar-se, ainda assim não o possibilita diretamente (mas favorece) na busca da excelência moral que seria, a princípio, sua norteadora fundamental (EN, II, 4).
Isso porque cabe ao ser, de modo particular, buscar esta excelência, e introjetar em si mesmo a noção do que é bom e correto. Ainda que lhe seja mostrado o que é virtuoso, se ele não souber (ou não buscar) ter discernimento em suas ações, suas experiências não o conduzirão ao que é justo; ”as próprias pessoas engajadas na ação devem considerar em cada caso o que é adequado a ocasião” (EN, II, 2, 1104a 5) porque (no comentário oportuno de Confúcio, que poderia perfeitamente lhe dar seguimento) “O caminho não pode ser abandonado por um só instante; se pudesse, não seria o caminho. Por isso, o ser superior espreita o que seus olhos não podem ver e atenta-se ao que os ouvidos não podem ouvir. Não há nada mais visível do que o que não se busca ver, nada mais palpável que o não-tocado. Por isso o ser superior presta atenção diligentemente a si mesmo” (ZY, 1). Assim sendo, a educação é a base sobre a qual se desenvolve o conhecimento do ser, mas a ação segundo este saber só se dá pela tomada de consciência do o que é justo, e este justo só se obtém pela experimentação.
Neste ponto, tanto gregos quanto chineses inferiram que um outro elemento deveria ser agregado ao processo de entendimento e aquisição da noção de justa medida. Ainda que as virtudes possam ser demonstradas ou praticadas, é fundamental que elas sejam executadas com o fim em si de seres virtuosas, pois isso é o que caracteriza a excelência moral e a eficácia do ato. Há que se constituir e desenvolver, por conseguinte, um atributo que sirva ao discernimento e a elucidação dos fins de toda experimentação.  A busca da virtude é antes de tudo uma disposição íntima (EN, II, 5). Esta capacidade, pois, será conhecida pelos gregos como frônesis; quanto aos chineses, vale aqui compreender as variantes homeomórficas que podem ser atribuídas com certa equivalência a esta noção.
Primeiramente, analisemos o conceito de frônesis grega. A primeira das interpretações que se lhe dá - sendo consideravelmente difundida - é de que ela pode ser entendida como a prudência, na acepção aristotélica da palavra. Pierre Aubenque (1963/2003) dedicou um incisivo estudo à questão, delineando esta prudência como uma sabedoria da ação prática (ou seja, advinda da práxis). Como Aristóteles afirma, a frônesis é “uma disposição prática acompanhada de regra verdadeira concernente ao que é bom ou mau pro homem” (EN, VI, 5, 1140b 20, apud Aubenque, 2003: 60). Num artigo mais recente, M. Bastit re-avaliou esta questão, considerando um tanto incorreta o que seria esta possível aproximação entre frônesis e sofia (sabedoria) (Bastit, 2002: 196). Em sua análise, o termo poderia ser melhor traduzido como sagacidade, posto que esta palavra representaria mais adequadamente uma busca constante pela perfeição, para além de uma simples prudência nos atos morais (segundo sua tradução do fragmento EN, 1138b20). Desta forma, a sagacidade seria, sim, um dos princípios geradores da práxis (ibidem, 204).
Considero, porém, que esta tentativa de propor uma tradução específica do termo frônesis seja pouco pertinente. Aubenque demonstra - muito bem – que este conceito pode presumir tanto o caráter “prudencial” da ação quanto a necessidade de reformular constantemente a práxis; de fato, a palavra frônesis adquire um significado especial e próprio dentro da ética aristotélica, e deve ser investigada como tal;
“se, pois, a prudência não é nem ciência nem arte, resta que seja uma disposição (o que a distingue da ciência) prática (o que a distingue da arte). Mas isso provaria, no máximo, que ela é uma virtude. Para distingui-las de outras virtudes morais, é preciso acrescentar outra diferença específica; enquanto a virtude moral é uma disposição (prática) que concerne a escolha, a prudência é uma disposição prática que concerne à regra da escolha. Não se trata de retidão na ação, mas de correção do critério, razão pelo qual a prudência prática acompanhada de uma regra verdadeira. Mas essa definição é ainda ampla demais, pois poderia ser aplicada a qualquer virtude intelectual: se distinguirá, então, a prudência dessa outra virtude intelectual, que é a sabedoria, precisando-lhe o domínio, que não é o Bem e o Mal em geral, ou o Bem e o Mal absolutos, mas o bem e o mal para o homem” (Aubenque, 2003: 61-2).
De modo análogo, a sinologia também discutiu que conceito seria fundamental para estruturar esta disposição prática da ação no confucionismo e ainda, qual deles melhor traduziria (ou representaria) para o chinês a noção de frônesis.
A primeira destas noções - e usualmente mais aceita – é a de Zhi  (conhecimento, sabedoria), que se acopla ao modo de inferir o justo meio. Isso porque Zhi é, exatamente, a sabedoria advinda do conhecimento prático. O ideograma representa uma flecha disparada contra um alvo - ou seja, apresenta-nos a idéia de que a técnica pode ser ensinada, mas a virtude se adquire pelo hábito e pela prática, delegando ao indivíduo a tarefa de aprimorar-se (No. 131 in Wieger, 1969). O modelo da arqueria é, a propósito, referencial tanto em Confúcio quanto em Aristóteles, como veremos adiante.
Por outro lado, já foi proposto que frônesis fosse associada diretamente à idéia de Yi  (retidão moral), posto que este conceito pressupõe não somente o conhecimento do que é moral mas ainda, a disposição em mantê-la através da prática constante (Tu, 1976 e Ames & Hall, 2002c). Acredito particularmente, porém, que esta interpretação não seja suficientemente adequada, dado que ela não supõe a disposição prática para aquisição de um saber próprio; Yi responde fundamentalmente a idéia de moral como uma concepção do que é correto e errado já estabelecida (ou, de um conjunto de virtudes já definidas), e não inferida pela experimentação; não é também estática (pois inclui a idéia de adaptação e reformulação), mas não diz respeito ao que a precede, que é justamente a experiência prática. Este fator se encontra devidamente em Zhi. Quanto ao argumento de que Zhi se aproximaria da Sofia, acredito igualmente que esta interpretação é errônea; Sheng  talvez seja o conceito mais apropriado para um equivalente homeomórfico de Sofia, pois ela se remete ao atributo do junzi (o ser superior, o ser moral) que é aquele que conjuga o saber interno e o externo, a experiência intelectual e a prática. Sheng é Ren ( humanismo), Li ( ritual), Yi ( moral, retidão moral) e Zhi ( sabedoria, conhecimento) conjugados. Ela advém desta experiência, deste saber experimentado que é Zhi. Zhi é, pois, a base pela qual se atinge a regulação da justa medida (Zhong Yong). Tal consideração é compartilhada por Hansen (2000: 57-95) e Jiyuan (1998 e 2002), cujas interpretações empregamos neste trabalho. No texto do Zhong Yong, capítulo 25, há um trecho esclarecedor sobre esta relação zhi / sheng;
“Realizar a si próprio corresponde ao senso de equidade humana (ren); realizar as coisas corresponde ao conhecimento (zhi). Esta é a capacidade de nossa natureza (xing), o caminho que une o interno e o externo (sheng); por isso, em qualquer momento, ela está aberta [é mutável], adaptando-se [às circunstâncias]”; o ser moral pode iniciar sua vida nas coisas comuns, mas o nível supremo [da compreensão do caminho] está na amplidão do cosmo (ZY, 12).
Admitindo este viés, portanto, podemos apreender que frônesis e zhi são equivalentes homeomórficos, pois consistem nesta capacidade de construir um saber sobre a experimentação, pelo qual as virtudes se estabelecem afim de atingir a excelência moral.
 
 
A excelência moral, a justa medida e o ajuste da propensão
Aristóteles deixa claro que a excelência moral não é nem uma emoção nem uma faculdade, mas uma disposição do ser (Muzellec, 1998: 98). Sendo assim, ela se atrela a um processo de experimentar o excesso e falta pelo qual se define aquilo que é justo em relação ao prazer e ao sofrimento; “a virtude é constituída naturalmente, em estados que tendem a ser destruídos pelo excesso e pela deficiência” (EN, II, 2, 1104a 15 §6).
Há, entre os valores morais reproduzidos na sociedade, aqueles que podem ser considerados como excessivos ou deficientes de acordo com o ato e a qualidade a que se destinam. Deste modo, o que pode se inferir como um justo meio é aquele tido como a medida entre estes dois extremos, embora o mesmo não possa ser aferido de forma única, dado que cada ser constitui um caso particular. Mas, na percepção grega, a justa medida é – nela mesma – a própria excelência moral para si e com os outros. Diante desta condição dicotômica, Aristóteles então determina o caráter das virtudes que podem ser ditas como referências de justa medida; processo que serve igualmente a Confúcio para dotar o ser de um parâmetro sobre o que é moralmente correto. No entanto, veremos nos últimos capítulos que a conclusão sobre esta referência ao que é justo varia entre os dois autores, diante dos pontos axiais nos quais eles se estabelecem.
Retornemos ao início deste capítulo; a questão sobre atingir a justa medida reside em ambos os caos, pois, em possuir uma prudência (frônesis/zhi) que estruture o meio pelo qual o ser acopla o conhecimento da virtude, a prática da virtude (pela experimentação) e a aquisição da excelência pela compreensão do que é justo. O caráter prático deste modo de proceder em relação a ação caracteriza então a formulação de uma sabedoria (e aí sim, sofia/sheng) que congrega o método (ou teoria) dito filosófico com o problema da sua aplicação técnica.
Mas se cada caso é particular (pois os seres são variados), como saber então que a medida é justa diante dela mesma e diante daqueles as quais ela se aplica? Como se pode afirmar que ela é permeada pela sabedoria se - ainda que a sabedoria seja única, e ao mesmo tempo multifacetada, por ser humana – a natureza é gerada (e gerida) pelo processo da mutação (e por isso, os seres são diversos em tipo e constituição)?
Novamente, a resposta dada por Confúcio e Aristóteles acopla o problema desta variabilidade justamente com a eleição da medida como o ponto de congregação, onde se iguala a diversidade e se atinge a equanimidade pelo re-escalonamento das virtudes particulares de cada ser advindas de sua propensão. Assim sendo, a justa medida é, por conseguinte, um ajuste da propensão; o ponto do que é justo desloca-se, dentro de um mesmo plano, para atingir e realizar as capacidades intelectuais, morais e físicas daquele que a pratica. A propensão demonstra o caminho do agir moderado, mas também, o meio pelo qual o ser se realiza e atinge a plenitude, como vemos em ambos os autores:
“Somente os que possuem uma total perfeição moral podem manifestar por completo sua natureza; somente os que possuem uma natureza perfeita podem fazer aflorar a natureza dos outros; e apenas os que podem fazer aflorar a natureza dos outros podem fazer aflorar a natureza das coisas. Aqueles que podem fazer aflorar a natureza das coisas podem ajudar o Céu e a Terra em sua criação; podendo ajudar o Céu e a Terra em sua criação, podem, então ser como o próprio Céu e a Terra” (ZY, 22);
“Por isto que devemos desenvolver nossas atividades de uma maneira predeterminada, pois nossas disposições morais correspondem as diferenças entre nossas atividades. Não será pequena a diferença, então, se formarmos os hábitos de uma maneira ou de outra desde nossa infância; ao contrário, ela será muito grande, ou melhor, ela será decisiva” (EN, II, 1, 1103b 25);
E a plenitude é a excelência, em todos os sentidos;
“Assim, a busca pela perfeição moral, em seu estado supremo, é sem interrupção. Não se interrompendo, ele se estende indefinidamente; se estendendo, ela se manifesta; se manifestando, ela tudo abrange; tudo abrangendo, ela ganha amplidão e consistência; ganhando amplidão e consistência, ela adquire clareza e altura” (ZY, 26).
Logo, o Dao (via) do Zhong Yong (a justa medida, a mesotes dos gregos) é um só para todos e, ao mesmo tempo, variado segundo cada disposição particular (mas lembremos, esta disposição é inerente à natureza do ser). Posto que ele é o melhor porque visa o que é justo – e concerne a um justo que todos podem vislumbrar – a estrutura sobre a qual se constrói é, igualmente, única (a experimentação) e concomitantemente variada (pois oferece resultados diferentes para cada ser), mas conduz a uma condição equânime de ação e à formulação de uma medida  baseada em virtudes mutuamente reconhecidas.


[1] Sobre a educação em Aristóteles, ver o texto de Boto, C. “A ética de Aristóteles e a Educação” in Videtur , n.1, São Paulo: Mandruvá, 2002.