Introdução

Entre os quatro mares, todos somos irmãos (LY, 12)

Talvez o grande impedimento para um ocidental compreender (e aceitar) o saber chinês como uma forma lógica e válida de pensar filosófico é, justamente, o desconhecimento que dele temos. Somam-se a esta condição alguns séculos em que a cultura ocidental fomentou a idéia de uma “superioridade intelectual” sobre as outras civilizações, criando uma barreira ideológica para a investigação de toda e qualquer outra forma de saber que não se incluísse em sua tradição (Shaw, 1978).
Esta postura, que só recentemente tem sido revista, nos coloca na difícil tarefa de realizar um trabalho sobre o pensamento chinês que possa, de certa maneira, ser aceito e avaliado dentro dos critérios desta que (a primeira vista) poderia ser tida como grande “antagonista” (e será?) dos “saberes asiáticos”, a Filosofia.
A questão aqui presente nesta Tese não trata de afirmar ou negar o valor de uma sobre a outra. Muito menos, de realizar comparações estéreis que deixam ao terreno da especulação as possíveis conexões entre os saberes de Ocidente e Oriente. Admitimos, aqui, a anuência da Filosofia como o nosso guia primeiro nesta busca pelo conhecimento, pois somos ocidentais; mas o ponto para onde queremos convergir é o da possibilidade de existir uma identidade bem mais profunda entre essas “sabedorias” (palavra esta tão banalizada que seu sentido imediato, atualmente, quase a afasta do saber filosófico), trazendo para o plano humano a capacidade de discutir o mundo, numa perspectiva além de suas singularidades e divergências étnico-culturais. Como diz C. Moore,
“A opinião mais fecunda sobre a relação entre as filosofias da Oriente e do Ocidente - Metafísica, Ética, etc. - é a de que uma suplementa a outra e de que cada uma provê ou salienta os conceitos de que a outra carece ou que tende a minimizar. Esta interpretação sustenta, ademais, que estas duas faces essencialmente diferentes do pensamento humano podem e devem ser conjugadas numa síntese que nos aproximaria mais de uma “filosofia mundial” - de uma filosofia digna do nome, mediante um ajustamento fiel da natureza da Filosofia como "perspectiva total". Nem o Oriente nem o Ocidente é perfeito em sua perspectiva: ambos necessitam corretivos que não se apresentam de forma satisfatória na sua própria perspectiva imbuída de preconceitos. A sabedoria do Oriente e a do Ocidente devem ser fundidas para darem ao homem a vantagem da sabedoria da Humanidade. Esta é, em geral, a atitude essencial a ser adotada em qualquer estudo comparado das filosofias do Oriente e do Ocidente, e, no entanto, há perigo em adotá-la de uma forma muito pouco crítica. Em primeiro lugar, tal interpretação parece implicar que o Oriente e o Ocidente estão em pólos opostos em matéria de conceitos, teorias e métodos filosóficos, e a implicação, além de imprecisa, é capaz de neutralizar, em vez de fomentar, o interesse pela Filosofia comparada, pois, de um ponto de vista prático, nem o Oriente nem o Ocidente está disposto a procurar corretivos em uma cultura, uma tradição ou uma perspectiva alheia à sua. Uma segunda implicação é que a filosofia do Oriente e a do Ocidente são simples, bem definidas e de um só padrão, de tal modo que cada uma pode ser confrontada com a outra. Ver a situação sob este prisma é fazer manifesta injustiça, não apenas ao Ocidente mas também ao Oriente, desprezando uma rica variedade de correntes de pensamento que desafia qualquer categorização semelhante” (Moore, 1978: 271-72).
Este apontamento é fundamental para delinearmos os propósitos deste trabalho. O que nos dispomos a fazer é uma investigação sobre como podemos encontrar uma identidade entre conceitos filosóficos do pensamento grego e o chinês. Não queremos elaborar mais uma analogia simples e artificial, pois esta só estabelece similitudes por uma via comparativa que pressupõe, desde o início, a diferença entre os autores e suas culturas, superficializando a abordagem. A busca, aqui, é de como tais conceitos podem ser compreendidos como filosoficamente intercambiáveis (ou homeomórficos, na acepção de Panikkar, 1996), e de como sua interpretação pode gerar ações éticas similares em sociedades bastante diferentes.
Obviamente, a amplitude que envolve estas questões nos forçará, inevitavelmente, a discutir alguns pontos delicados - porém fundamentais - para a compreensão deste trabalho. Um deles consiste em saber se o pensamento chinês é uma filosofia, tema esse debatido com certa constância entre filósofos e sinólogos para inferir uma posição pela qual o saber desta civilização possa ser analisado no Ocidente (pois já está fora de questão discordar de sua importância). Isto nos remeterá a uma necessária apresentação histórica sobre o assunto, mas cuja dimensão servirá, por fim, para embasar nosso objeto de estudo.
Nossa proposta, portanto, é a de identificar em que medida há uma relação conceitual direta entre a concepção de justa medida proposta pelo pensador chinês Confúcio no texto intitulado Zhong Yong e o justo meio aristotélico presente no livro II da Ética a Nicômaco. Aspectos mais amplos desta relação já haviam sido notados por F. Jullien em seu livro Um Sábio não tem idéia, num capítulo bastante intrigante, onde afirma que “o justo meio está na igual possibilidade dos extremos” (p.29-39), e que este pensamento - autenticamente tanto chinês quanto grego - se vê prejudicado em sua relação pelo conflito (que nós, ocidentais, estabelecemos) entre a Sabedoria e a Filosofia, uma forma de distinção elaborada, na verdade, para separar aquilo que julgamos ser “ideal” e “sub-filosófico” (a Sabedoria ou, em outras palavras, como tratamos o “pensamento oriental”) e aquilo que vêm a ser o conhecimento, o que é inferido pelo estudo das coisas (o Logos, ou Filosofia). Esta dicotomia (fundamentalmente problematizada pela questão hierárquica), em princípio, não pode ser definida com tanta precisão como alguns filósofos ocidentais quiseram, mas sua influência se fez bastante presente na distância que estabelecemos entre o Ocidente e a China.
A construção desta demarcação envolveu em espessas brumas a compreensão do pensar chinês. Como veremos, as tentativas de enquadrá-lo em categorias essencialmente nossas - “Filosofia”, “Religião”, “Mitologia” - foram sempre dificultosas, com uma forte tendência a uma associação contextual e pejorativa. Isto significou reproduzir o velho hábito de classificar aquilo que é chinês sempre num nível hierárquico inferior, quando se trata de estabelecer comparações. Parece sempre haver a falta de um “algo” que possa permitir equiparar e qualificar a China em nossas categorias.
Quem já não disse, por exemplo, que o Confucionismo seria uma religião, por ocasião de uma conversa sobre Filosofia? Quem já não disse que o mesmo seria “costume”, quando se falava de religião? E quantos, porém, tem algum conhecimento razoável sobre o assunto para poder opinar com segurança? Quantos estudantes não têm repetido o adágio “no Oriente não há Filosofia”, quando sabem tão pouco sobre o assunto?
Por isso mesmo, buscar co-relacionar Confúcio e Aristóteles pode parecer, a princípio, um vôo arriscado e complexo. Demanda estudar e conhecer um pouco sobre dois mundos aparentemente bastante diferentes - e no entanto, percebe-se que para além daquilo que os separa, existem idéias que os aproximam. Mesmo que a Grécia e a China tenham estabelecido suas fronteiras intelectuais entre eles e os “bárbaros”, aquilo que identifica o que somos - a nossa humanidade - sempre foi, ao menos, um pressuposto universalista no pensar chinês.
Na concepção chinesa de uma imanência criativa, calcada na concepção de que as idéias "brotam" onde há seres humanos, buscar a identidade conceitual é estabelecer uma correspondência digna e equânime entre aquilo que a China descobriu e o que vêm de fora. O sábio chinês, ao comparar o que conhece com o novo, busca saber se se trata do mesmo; se o for, isso comprova o que já sabe. Se não, ele o avalia e vê se isso contribui de alguma forma para com o seu saber. Sua postura, pois, nunca é a de recusar a priori o que não sabe, mas a de ser cauteloso. Se o seu referencial é o próprio saber chinês, este não é, por princípio, excludente. A tradicional xenofobia chinesa que conhecemos é um efeito estranho dos períodos difíceis pelo qual esta civilização passou nos séculos XIX e XX, e não uma marca perene.
Esta postura chinesa deixa a porta aberta ao intercâmbio de idéias. Baseia-se num fundamento cosmológico que universaliza o processo criativo e, conseqüentemente, permeia a noção de que os humanos têm as mesmas possibilidades de realização e pensamento. Buscar, portanto, a possível conexão entre Confúcio e Aristóteles será descobrir o dao (Caminho, Método, Fórmula) que ambos escolheram. Trata-se de escapar da armadilha “logocêntrica” que o Ocidente armou para si próprio, acreditando que suas formas de pensar poderiam ser de alguma forma universais ou universalistas de um modo solíptico - mesmo que isso significasse, portanto, afirmar que outros (os orientais) não teriam tido capacidade de produzir algo semelhante, o que veremos se tratar de um grande engano. Visamos, pois, perceber que pode haver algo de universal entre ambos os saberes, mas sem que isso exija a superposição de um sobre o outro – afinal, se se negasse a validade do universalismo de facto tanto ao Ocidente como ao Oriente, nossa proposta de trabalho conseqüentemente perderia sentido.
Talvez um exemplo da capacidade chinesa em lidar com a diferença possa ser demonstrado por um decreto do “imperador-sábio” Taizong, da dinastia Tang, feito em torno de 635 d.C. Por ocasião, nesta época, da chegada de inúmeras correntes filosóficas e religiosas vindas do Ocidente às plagas do celeste império, o soberano mandou proclamar que “o Caminho (dao) tem mais de um nome. Existe mais de um sábio. As Escolas variam nas diferentes terras, mas seus benefícios alcançam a todo o mundo” (JTS, 2). Todos os Caminhos são Caminhos para o Caminho. Este é o mote de nosso trabalho.